o consumo cultural de alimentos tradicionais
“Quando se diz que a função essencial da linguagem é sua capacidade para a poesia, devemos supor que a função essencial do consumo é sua capacidade para dar sentido”. (Mary Douglas)
Para a antropóloga Mary Douglas, a função essencial do consumo é fazer sentido. Não se trata de uma estatística ou uma interpretação pautada na superficialidade, condenada ao consumismo ou, ainda, uma forma de alienação. Em O Mundo dos Bens, a autora aborda o tema Consumo como uma questão cultural, simbólica, definidora de práticas sociais, modos de ser, diferenças e semelhanças.
É neste universo que o consumo se apresenta como um fenômeno típico da experiência social da modernidade. O aforismo de Brillat-Savarin - “Dize-me o que comes e te direi quem és” - introduz as escolhas alimentares nesta arena, onde a cultura, a origem e a tradição reforçam a distinção do comensal moderno.
No livro O Dilema do Onívoro, o jornalista Michael Pollan destaca que “nunca foi tão forte o impulso existente na alma humana para cheirar uma flor, fazer um afago num porco e saborear a comida”. Nessa busca de dar sentido à vida social, o consumo de produtos gourmets em harmonia com toda a cadeia produtiva está em evidência. Isso é devido a uma série de fatores como a crise alimentar, energética, ambiental, as fragmentações das relações e dos valores humanos.
A comida se insere neste cenário como um atalho para retornar às origens, uma maneira de recomeçar, corrigir os erros, privilegiar a economia local ao invés da global, reconhecer o valor do campo, da Terra. Enfim, consumir a partir da compreensão de que “toda a questão da saúde, do solo, das plantas, dos animais e do homem é um único e grande tema, como afirma o ensaísta americano Wendell Berry.
em busca dos sabores perdidos
Há cerca de sete anos, o carioca Paulo Lima, compreendeu o que representa este conceito de consumo a partir da alimentação e, daí em diante, tem se dedicado a identificar sabores perdidos ou esquecidos, reposicionando-os no mercado para atender a esta demanda da comensalidade contemporânea.
Formado em marketing com pós-graduação Desenvolvimento de Comércio Eletrônico e em Psicologia do Consumidor, na Universidade de Nova York, Paulo aceitou o convite para trabalhar em um projeto da revista La Cucina Italiana (a publicação mais antiga de gastronomia), que pretendia associar os produtos de consumo (azeites, vinhos e queijos) aos seus 500 mil assinantes.
O que era para ser uma pesquisa se transformou num projeto de vida para o jovem de 30 anos, que se apaixonou pelo tema. De Nova York, partiu para a Itália com o objetivo de conhecer a origem e os produtores de azeites, queijos e vinhos. “Foi uma experiência fantástica. Antes, a relação que eu tinha com a comida vinha de casa. Sempre comi muito bem. Minha avó é italiana e os sabores que provei são um pouco além dos de Adriá, Bocuse, Ducasse e outros chefs”, lembra.
Segundo Lima, o roteiro do premiado Ratatouille define com precisão o que representam esses sabores. No momento em que o crítico de gastronomia prova o prato, sua memória é instantaneamente ativada e viaja até à infância, onde sua mãe lhe preparava o popular cozido francês. “Esta é a parte mais importante comida. É prazer, lembrança de lugares, de pessoas, a convivalidade”, diz.
Este encontro com comida foi o início para ele decidir o rumo de sua carreira. Somado à base acadêmica em negócios, administração e marketing, Lima fez um mestrado em Cultura e Comunicação Alimentar pela Universidade de Ciências Gastronômicas, coordenado pelo Slow Food . Ele foi o primeiro aluno brasileiro.
“Pesquisei muito para poder sintonizar os sabores e as tendências alimentares. Tive uma visão 360º do que é food culture. Desde a produção alimentar passando por biologia, química, comunicação, territórios, além das viagens e o contato com grandes chefs e ministros de agricultura de países como Japão, França, Escandinávia e outros”, explica.
Assim como o escritor francês Marcel Proust relembrou sua infância com chá e madeleine e escreveu uma das maiores obras da literatura mundial - Em Busca do Tempo Perdido - Lima tem o desafio de resgatar os sabores mais tradicionais de diversas partes do mundo, estimulando a sua continuidade e acesso, através de uma complexa estrutura de marketing atrelada à produção local.
Para o especialista, a gastronomia não pode ser entendida como culinária apenas. Esse é o aspecto que o consumidor identifica com mais facilidade. Entretanto, o conceito está ligado ao produtor artesanal, que elabora um ingrediente de maneira única e, a partir daí, atiça a imaginação dos grandes chefs para levar o sabor à mesa. Seu trabalho está focado em identificar sabores e territórios diferentes.
Primeiramente, ele faz uma pesquisa para avaliar o que está disponível e o que pode ser inserido em diversos mercados do mundo, que são as grandes lojas de gastronomia. Depois, empreende uma etnografia do produto. "Sento à mesa com os produtores e suas famílias para compreender o sentido de sua produção e entender toda a magia do negócio, da onde vem a matéria-prima, porque crescem de determinada maneira, se usam pesticidas, dentre outros aspectos". Essa análise é que vai direcionar o posicionamento nos mercados como produto de luxo.
Um exemplo é a Espelette, a única pimenta do mundo com AOC, cultivada na França. Este foi um dos ingredientes selecionados para o Projeto La Organic, iniciado este ano, do qual Lima é o diretor de food trends.
“A pimenta não foi selecionada só porque tinha um gosto bom e Alain Ducasse passou a usá-la em suas receitas. A pesquisa funciona porque o território de Espelette é cercado pelos Pirineus que faz um determinado microclima, que quando a massa marítima entra naquela área reproduz um clima tropical similar ao mexicano, origem deste tipo de pimenta. A Espelette é cultivada praticamente da mesma forma há 500 anos no México e, agora, quase não existe mais. Hoje é parte do microclima francês e está integrada na alimentação local, sendo utilizada de diversas maneiras”, justifica Lima.
Em 2009, ele pretende introduzir no projeto uma linha de chás, cultivado em pequenas regiões do Sirilanka, de Taiwan, da Índia e do Sul da China. Para isso, Lima vai acompanhar a colheita das flores. “Quero pegar a primeira informação sobre aquela experiência, o que pode ser passado para a identificação do terroir, levando ao consumidor um produto diferente”. Está previsto também uma linha de chocolates, que será feito com produtores de cacau junto com um chocolatier da Bélgica ou Suíça para trabalhar com a matéria-prima seguindo a tradição dos Maias e Incas. “Nosso objetivo é lembrar os sabores de como eram uma vez”.
A proposta de Lima é avaliar a linha que vai desde à agricultura até à mesa. Cada produto deve ser posicionado em um mercado específico como Alemanha, Japão, Estados Unidos, Hong Kong, Suíça e outros. Os speciality foods serão vendidos em lojas superpotência, que tem uma educação voltada para este segmento e poder aquisitivo elevado.
O Projeto La Organic funciona em Madrid, na Espanha, e Lima é o responsável por selecionar estes sabores que vão entrar no mercado de luxo. O trabalho inclui um planejamento logístico para avaliar se o produtor é capaz de fornecer para um determinado mercado. A equipe é formada também pelo renomado designer Philippe Starck, o enólogo Michell Rolland, o chef Rafael Anson (presidente da Academia Espanhola de Gastronomia) e o idealizador, Pedro Gómez de Baeza, proprietário da La Amarilla de Ronda, que produz e exporta azeite para cerca de 14 países nas melhores lojas de gastronomia do mundo.
Lima completou o time para ampliar o La Organic, fazendo a ligação entre produtor, territórios diferentes, os melhores cozinheiros e a mídia. O projeto é de seis anos e, no segundo semestre, serão lançados cinco matérias-primas: sal, mostarda, açafrão, vinagre balsâmico e pimenta.
o sentido da tradição
Apesar de ter essa uma origem que ele classifica como “pobre”, os ingredientes são posicionados em um mercado de luxo, pois são formadores de opinião e têm maior acesso para entrar no consumo e, automaticamente, influenciar as outras camadas. Ele cita o exemplo da flor de sal, que hoje em dia é encontrada em qualquer lugar com preços diferenciados. A descoberta foi em 1970 com Paul Bocuse e Alain Ducasse.
Segundo o diretor de Food Trends, a quantidade limitada em segmentos de luxo é a maneira de movimentar esses sabores e experiências sensoriais únicos. Ele destaca também o aspecto social do projeto: “você ajuda o produtor, paga um preço justo e faz com ele não perca o interesse de acabar com essa atividade singular. Ao invés de ir para uma cidade urbana para trabalhar num subemprego, ele tem a possibilidade de aprimorar sua matéria-prima, mantendo a tradição. Essa é a recompensa maior, poder receber a ligação de um senhor de 70 anos do Sul de Portugal, por exemplo, agradecendo com a voz embargada, pelo seu ingrediente ter sido selecionado”, afirma.
Em 2009, o especialista pretende introduzir produtos brasileiros na linha como a Castanha de Baru (Pirinópolis) e o Mel das abelhas-canudo, produzido pela tribo indígena dos Sateremauê, no Xingu.
Ele alerta para a necessidade de movimentar esse setor de speciality food para manter ativa a sustentabilidade do ciclo. Se esses mercados saem do circuito, as multinacionais da área de alimentação vão produzir de maneira industrial, perdendo todo o sabor e identidade.
origem embalada no conceito de life style
A estratégia para que estes produtos artesanais possam conquistar espaço no mercado de luxo é estabelecer uma ligação com grandes chefs de cozinha (Ferran Adria, Victor Sobral, Ducasse, entre outros) e a mídia. Estes dois elos se comunicam com o consumidor final. Isso também está interligado com o conceito de food design e life style. “Então, esse matrimônio entre o produto artesanal e o produto de luxo, posicionado dentro de obras de arte não poderia ser melhor”, define. Lima destaca que apesar deste posicionamento para as classes mais altas, esta matéria-prima não é transformado em um produto de luxo. “Os sabores continuam com aquela origem que as pessoas costumavam consumir numa região especifica”.
Para exemplificar, o especialista lembra um ditado italiano que diz que “a comida verdadeira é comida de camponês”. A prova é o Ragu que continua com sua origem simples, mas se tornou um dos pratos mais importantes da Itália. “O produto se mantém com as características originais da variedade da planta, e segundo a tradição do território de onde vem. O fator luxo é embalagem, apenas para posicionar bem no mercado”. E essas linhas gourmet são oferecidas ao público em edição limitada. É mais um artifício que colabora com a produção local e a expectativa do cliente. Alguns produtos, só podem ser adquiridos por época ou estação. “Alguns que estamos trazendo de volta para as prateleiras podemos aumentar a produção".
O projeto de Lima é aplicar essa estratégia no Brasil e já está pesquisando e abrindo mercados. “Os produtos que seleciono têm como prioridade a origem e isso traz valor para nossos ingredientes como produto de desejo”. De acordo com ele, o segmento de gastronomia ainda engatinha no Brasil. A idéia é associada a um prato bonito. E, por isso, ainda não entrou na dinâmica da gastronomia mundial. "O país precisa produzir novos produtos. Estou tentando inserir a matéria prima brasileira. O Brasil vai entrar nesta roda porque eu sou brasileiro e carioca. Sei muito bem da onde eu vim”, conclui. Todo esse empenho e entusiasmo visam produzir sentido ao que comemos, o que reflete diretamente no que somos.
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Juliana Dias é jornalista e sócia-diretora da Malagueta Comunicação, no Rio de Janeiro.
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