segunda-feira, 26 de julho de 2010

Consumo, cultura e sustentabilidade

“Gastar, comer, destruir, empregar, esgotar, morrer”. Essas seis palavras definem a origem da expressão “consumir”, em latim. Segundo o dicionário Houaiss, o significado também pode ser “apagar-se da memória”, “gastar até o fim; dilapidar” e “comprar em demasia e freqüência, sem necessidade”. A prática, força motriz do capitalismo, símbolo de poder e distinção, está caindo em desuso ou, pelo menos, agora é mal vista por sociedades que começam a despertar para a consciência na utilização da Terra. Esta semana foi lançado no Brasil a versão em português do relatório “Estado Mundo 2010: transformando culturas do consumismo à sustentabilidade”. O documento é uma das mais importantes publicações periódicas mundiais sobre o assunto. Em sua vigésima sexta edição, aborda, pela primeira vez, o assunto sob o olhar da cultura.


A versão brasileira faz parte da parceria entre o Instituto Akatu e o Worldwatch Institute (WWI). O arquivo está disponível para baixar na íntegra. O relatório é um balanço atualizado com números e reflexões sobre questões ambientais. Um dos dados que chama a atenção é que apenas um sexto da humanidade consome 78% de tudo o que é produzido no mundo. A conclusão é que sem uma mudança cultural que valorize a sustentabilidade em vez do consumismo, nada poderá salvar a humanidade dos riscos ambientais e de mudanças climáticas. O tom alarmista se contrapõe com citação de diversas medidas a favor da reconstrução de valores sociais e culturais.

Na última década, o consumo de bens e serviços aumentou em 28%, exigindo cada vez mais a utilização de recursos naturais. Atualmente, um europeu consome em média 43 quilos em recursos naturais diariamente – enquanto um americano consome 88 quilos, mais do que o próprio peso da maior parte da população. Há desigualdade também na maneira de consumir. Em 2006, os 65 países com maior renda foram responsáveis por 78% dos gastos com bens e serviços. Os Estados Unidos, ícone das grandes porções, abocanharam 32% do consumo global. Isso porque os norte-americanos representam apenas 5% da população. Se esse modelo vigoraresse, apesar de imperativo nas sociedades urbanas, o planeta comportaria apenas 1,4 bilhões de habitantes.

De acordo com o professor de economia da FEA/USP, Ricardo Abramovay, a compulsão pelo consumo é uma construção social, e o consumismo não guarda relação com liberdade de escolhas. Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, Abramovay, também diretor do conselho acadêmico do Akatu, cita exemplos de como empresas, governos, escolas, mídia e religiões convergem, ainda que não articuladas, para promover o desejo de compra sem limites. Hoje, o investimento em publicidade dirigida às crianças está em torno de 17 bilhões de dólares por ano, nos EUA. Quase dois terços das escolas norte-americanas recebem uma porcentagem da renda das máquinas de vender refrigerantes e guloseimas e um terço delas são financeiramente premiadas quando ultrapassam determinado nível de vendas. O faturamento global com propaganda e marketing, em 2008, foi de quase US$ 650 bilhões.


Linha do tempo da qualidade ambiental e do bem estar social

O documento traça uma interessante retrospectiva cronológica com avanços, retrocessos e tropeços entre outubro de 2008 a dezembro de 2009 que afetaram a qualidade ambiental e o bem estar social. Em Sistemas Marinhos, um estudo relata que o dióxido de carbono está aumentando a acidez dos oceanos pelo menos 10 vezes mais rapidamente do que se pensava tempos atrás, com efeitos negativos sobre diversas espécies de crustáceos. Outro levantamento mostra que pesqueiros que criam “peixe forrageiro” de pequeno a médio porte para alimentação de peixes de viveiro, porcos e aves estão afetando tanto os ecossistemas marinhos quanto a segurança alimentar humana.

A boa notícia é que a população de peixes está começando a se recompor em 5 dos 10 maiores ecossistemas marinhos sob manejo rigoroso, sugerindo que esforços para coibir a pesca predatória estão surtindo efeito. E na área de governança, os países da FAO avançam no primeiro tratado global com a finalidade de fechar portos pesqueiros a embarcações envolvidas em pesca ilegal, clandestina e não regulamentada.

A horta orgânica da Casa Branca, iniciativa da primeira-dama Michelle Obama, está registrada na linha do tempo. Outro dado revela que a venda de produtos orgânicos nos EUA alcançou 24,6 bilhões de dólares em 2008, um aumento de 17% em relação a 2007, apesar da crise econômica. Também cita que o estado norte-americano de São Francisco adotou uma “política revolucionária” para aumentar o acesso de alimentos saudáveis. Ao mesmo tempo que apoia a agricultura local, reduz emissões de gases de efeito estufa relativas a embarque de produtos. A contrapartida da América parece uma espécie de redenção para amortizar dados tão expressivos de consumimo desenfreado.

O documento está dividido em 6 capítulos, além de quadros e tabelas, totalizando 298 páginas, com artigos assinados por diversos autores. O capítulo de abertura “Em antigas e novas tradições”, relaciona os rituais religiosos com as práticas alimentares, e estimula o bom senso no uso dos recursos, como o ensaio sobre modos de produção intitulado “Da agricultura à permacultura”.

No capítulo “Nova tarefa da educação: sustentabilidade” há um artigo intitulado “Repensando a alimentação escolar: o poder do prato público. Em “O papel dos governos”, aborda propostas para construção de cidades sustentáveis e trata da reinvenção dos serviços de saúde. “Mídia: transmitindo sustentabilidade”, apresenta três tópicos a respeito do comportamento dos meios de comunicação para a disseminação da cultura sustentável. O anuário encerra com capítulo sobre os movimentos sociais, onde apresenta soluções, como as ecovilas, e destaca a atuação do movimento Slow Food. Entre os bons exemplos da associação de origem italiana estão os Mercados da Terra (encontros de produtores locais com consumidores) e criação de restaurantes e cafés, baseados na premissa em que o alimento deve ser “Bom, limpo e justo”. Também comenta o lobby dos integrantes do Slow Food em prol das causas sustentáveis. Nos Estados Unidos, onde se concentram o maior número de membros entre mais de 153 países, o relatório cita a campanha Hora do Almoço. A proposta é convocar o congresso para aperfeiçoar a Lei da Nutrição Infantil a qual estabelece os padrões das refeições escolares nos Estados Unidos. “Todo o movimento Slow Food – por suas atividades está desempenhando um importante papel parafacilitar uma mudança para culturas sustentáveis”, diz a autora Helene Gallis.

O lançamento do anuário aconteceu nessa quarta-feira (30), no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, em São Paulo. O evento contou com o debate “Transformando Culturas – do Consumismo à Sustentabilidade”. Participaram da discussão, mediada por Hélio Mattar (diretor-presidente do Instituto Akatu), Eduardo Athayde, diretor da WWI, Ricardo Abramovay, professor titutar da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Akatu e Lívia Barbosa, diretora de pesquisa do centro de Altos Estudos da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e membro do Conselho Acadêmico do Instituto Akatu.

Para a pesquisadora Lívia, “os vários exemplos citados, possibilitam juntar a cultura ao cotidiano das sociedades, fazendo com que o tema sustentabilidade saia das esferas dos governos e outras entidades e chegue è mesa da nossa cozinha”. O presidente do Akatu concluiu recomendando a leitura do documento que considera “primordial” para todos aqueles que têm alguma intenção de cooperar com a preservação do planeta. “O material impulsiona a todos os que têm acesso a ele a agirem em benefício da Terra”. A maneira como as culturas se relacionam com a comida, seja produzindo ou consumindo, está desencadeando uma visão mais crítica sobre a conexão existente no na tríade homem, natureza e cultura. É preciso urgentemente encontrar uma nova expressão para definir a utilização dos recursos naturais, bens e serviços. Consumir não vai combinar com as sociedades que não desejam mais gastar, apagar da memória, destruir ou esgotar.


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Juliana Dias é jornalista especializada em gastronomia, sócia da Malagueta Comunicação, empresa focada em conteúdo para o mercado gastronômico.

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