quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Terroir Alto Rio Negro: Qual o sabor da Amazônia?

Chefs de cozinha visitam Alto Rio Negro como parte do "Ano da França no Brasil”
A convite do ISA e do Institut de Recherche pour le Développement (IRD), Alex Atala e Pascal Barbot estiveram em São Gabriel da Cachoeira (AM) para conhecer a culinária e o sistema agrícola de matriz indígena e em processo de reconhecimento como patrimônio cultural.

Visitar roças, casas de farinha e provar vários menus degustação foram o foco da agenda semanal da dupla de chefs de cozinha no entorno da cidade de maioria indígena, uma das "capitais" da diversidade socioambiental da Amazônia brasileira.

A visita faz parte do calendário do Ano da França no Brasil que está se encerrando. Insere-se também no processo iniciado pela Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (Acimrn) em 2007 para o reconhecimento do sistema agrícola do Rio Negro como patrimônio cultural no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). A base do dossiê que sustenta a tese dessa patrimonialização é o projeto de pesquisa denominado Pacta (Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados), iniciado final de 2005 no âmbito da cooperação bilateral Unicamp-CNPq e IRD e coordenado pelo antropólogo Mauro Almeida e pela etnobotânica Laure Emperaire e do qual participam pesquisadores do ISA. Ao longo desses quatro anos foram construídas parcerias com a Acirmn e a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro). O apoio do Iphan levou à realização de um projeto de documentação sobre o sistema agrícola do Rio Negro e à assinatura de um termo de cooperação técnica, em agosto de 2009, para ampliar e consolidar essa reflexão sobre a diversidade dos sistemas agrícolas tradicionais no Brasil.

Um seminário a ser realizado em Brasília dias 19 e 20 de novembro pelo Iphan e o IRD permitirá debater o tema "Patrimônio cultural e sistemas agrícolas locais" centrado sobre duas questões: quais metodologias permitem apreender a complexidade destes sistemas e quais instrumentos são passíveis para salvaguardar e, ao mesmo tempo, manter o caráter dinâmico dos mesmos.

Mais de 200 espécies cultivadas
Na chegada a São Gabriel os chefs assistiram a uma apresentação dos resultados preliminares da pesquisa do Pacta, feita por Laure Emperaire e pela antropóloga Esther Katz, também do IRD e da pesquisa sobre as pimentas baniwa pelo ecólogo do ISA Adeilson Lopes da Silva.



Baseada em censos feitos com apenas 18 famílias de agricultores residentes no município de Santa Isabel do Rio Negro, vizinho a jusante de São Gabriel e parte do sistema socioambiental rionegrino, o grupo de pesquisadores acadêmicos e locais registrou mais de 200 espécies cultivadas com uso alimentar e analisou as redes de troca de plantas que sustentam essa diversidade agrícola. Incluídas as plantas cultivadas de uso medicinal, ornamentais e outras, esse número pode chegar a quase 300. Esse acervo local inclui plantas locais da região (endêmicas), plantas amazônicas ou plantas do Brasil ou de outros continentes incorporadas historicamente ao sistema.

Alex Atala e Pascal Barbot na casa de farinha da comunidade baniwa Yamado nas proximidades de São Gabriel da Cachoeira


Na casa de farinha, mulheres preparam o beiju


Novas plantas continuam sendo incorporadas, demonstrando um constante interesse das populações pela novidade e inovação botânica. Após a manga, o jambo, a fruta-pão, o rambutã pode ser encontrado hoje nos quintais do Rio Negro. E sem contar a superlativa diversidade varietal da mandioca brava. Esta planta constitui o eixo estruturante do sistema agrícola e a âncora de uma extensa culinária que inclui muitas frutas, pimentas e peixes... e modos próprios de pensar, de cuidar e de preparar, muito além do modelito exportação de Belém do Pará, hegemônico no imaginário brasileiro como "a comida amazônica", baseado no tucupi, açaí, pimentas de cheiro e algumas ervas (alfavaca, chicória e jambu).



Diversidade, commodities e mercado de ingredientes
Enquanto isso... as exuberantes florestas habitadas da Amazônia estão sendo suprimidas aceleradamente no últimos 20 anos para dar lugar à exploração madeireira, hidroenergética, à mineração, à pecuária e à soja ... inserindo-a no mercado internacional como fornecedora de um novo ciclo de commodities de baixo valor agregado.

Na contramão, uma série de alternativas locais de desenvolvimento sustentável, prismadas pelo respeito aos direitos coletivos dos povos indígenas e populações tradicionais e a valorização da diversidade socioambiental, desafiam o olho gordo e seletivo do mercado.

Mas são enormes os desafios que essas iniciativas têm para entender as diferentes perspectivas culturais dos "produtores" e estabelecer relações duradouras com o mercado, que vençam as muralhas legais e sanitárias, garantam diversidade de produtos, qualidade, fluxo, preço justo e volumes flexíveis, sustentáveis sazonalmente.

O tema dos ingredientes amazônicos no mercado da gastronomia é novo e desperta um enorme interesse diz Alex Atala, depois de temporadas no Amapá, experiências há dez anos no restaurante DOM de "gastronomia brasileira" em São Paulo, participação em conferências e festivais mundo afora e nas várias visitas de alguns dos principais chefs europeus para o mercado Ver-o-Peso que ciceroneou em Belém do Pará. "O problema é que não estamos preparados para atender a esta demanda", arremata. Como exemplo, lembra das debilidades do fornecimento do famoso açaí, talvez o caso recente de maior "sucesso" de mercado de um ingrediente amazônico: "É muito difícil conseguir polpa de açaí de boa qualidade em São Paulo, tem muita pirataria e mistura". O que tem funcionado, para garantir qualidade, são suas próprias redes sociais, os amigos intermediários... mas quem mais ganha com isso, diz Atala, são as companhias aéreas que cobram pelo frete.

Outra questão importante é o reconhecimento da origem dos produtos, seja por certificação ou instrumento tipo indicação geográfica. É o caso do guaraná, produzido na origem pelo povo indígena Sateré-Mawé (AM) para o qual essa planta é um elemento central na sua vida cultural e econômica, mas cujo maior produtor é atualmente o Estado da Bahia.

Pascal Barbot, 37 anos, observa com rigor e promove a origem dos ingredientes que transforma. Chef do distinguido (três estrelas no guia Michelin desde 2007) e exclusivíssimo L´Astrance em Paris (somente 25 lugares, reservas com dois meses de antecedência) o que poderia ser incorporado mais facilmente à sua cozinha seriam as frutas, talvez sob a forma de polpas congeladas. Na sua segunda visita ao Brasil e à Amazônia, depois de Belém e Marajó, ele provou de quase tudo no mercado Manaus Moderna, nas feiras de São Gabriel da Cachoeira e nas refeições especialmente preparadas pela dona Brasi (mestre local) e pelo Conde (chef autodidata do restaurante La Cave du Conde).

Dona Brasi com Alex Atala na cozinha da sede do ISA em São Gabriel da Cachoeira


Dona Brasi, uma mestre da cozinha regional, ficou responsável por dois almoços. Nascida no sítio Nova Esperança, nas proximidades da comunidade indígena Marabitanas, Alto Rio Negro, filha de comerciante com mãe indígena, se identifica como baré e fala língua geral ou nheengatú.
Com um breve intervalo de quatro anos em que viveu em Manaus para freqüentar escola primária, dona Brasi teve uma vida na beira do rio, de quintal, roça e mato. Convidada por Atala, ela esteve pela primeira vez em São Paulo em junho de 2009 para se apresentar num festival internacional de gastronomia. Para os chefs visitantes, dona Brasi preparou uma entrada de curadá (um tipo de beiju) ao molho de tucupi reduzido e saúva (formigas), com cebolinha fresca. Filé de piraíba na chapa com molho de cubiu, (legume amazônico primo do tomate), caldeirada de surubim, arroz de tucumã (palmeira das roças e capoeiras), farofa de caruru (planta silvestre das roças) e doce de cubiu. O menu seguinte teve pato ao molho com legumes, pudim de cupuaçu e bolo de pupunha.


Pimentas
Atala e Barbot coincidiram em apontar a oportunidade e as dificuldades de incluir ingredientes amazônicos no mercado da alta gastronomia e grifaram, por exemplo, o caso das pimentas, muito abundantes e variadas. Um caminho a seguir seria a de produzir purês congelados de pimentas frescas, na mesma trilha dos rocotos peruanos (um tipo de pimenta andina).



Outra possibilidade está sendo construída desde 2007 pelas mulheres indígenas baniwa e coripaco das comunidades ao longo do Rio Içana e Aiari, com apoio do ISA e Foirn, para aumentar a produção e comercializar sua tradicional jiquitaia ("farinha" de pimentas secas e piladas, com sal), sob a marca arte baniwa, originada há dez anos para a comercialização de cestaria de arumã. Já está bastante adiantado o processo de inventário de variedades, protocolos para o monitoramento da produção e de seus impactos socioambientais. Em curso está o aprimoramento do produto final e logística para a comercialização (embalagem e materiais promocionais, construção de três "casas de pimenta" para procedimentos finais de processamento e armazenamento) e a criação de um núcleo de gestão na Escola Indígena Baniwa Coripaco. Todas essas etapas exigem investimentos em pesquisa e desenvolvimento, que hoje mobilizam uma equipe de pesquisadores indígenas em cooperação com pesquisadores do ISA.

Resumo da ópera e próximos capítulos
"A Amazônia não tem sabor", diz Atala. A frase pode soar uma insanidade diante da imensa diversidade amazônica cantada em prosa, verso e ciência, enquanto boa parte das florestas vira carvão. Mas o que o chef quer dizer vem logo a seguir, na esteira das comparações evocativas que ele repete como um mantra nas palestras para estudantes de gastronomia: shoyo, gengibre e algas nos remetem ao Japão; tomate, muzzarella e manjericão à Itália; queijo, creme de leite e vinhos à França; leite de côco, dendê e coentro à Bahia... e no caso da Amazônia o quê, pergunta?

Se não há resposta consagrada, a conclusão do raciocínio é que há que inventá-la. O mercado pede simplificações para poder transitar mas, bem manejado, pode ser também uma garantia contra a perda de diversidade. Na outra ponta, as florestas habitadas por quem delas vive pedem complicações para seguir existindo.

Uma rede de entrepostos poderia sustentar a comercialização de um conjunto variado de produtos oriundos dos sistemas agrícolas indígenas cuja viabilidade ecológica já foi amplamente demonstrada. Instrumentos como indicações geográficas, comércio justo, agricultura orgânica, marcas coletivas podem apoiar a implementação de novas vias de comercialização.

Os chefs de cozinha são difusores de novas idéias e modas cujo impacto vai além da esfera restrita dos restaurantes da chamada "alta gastronomia". Uma onda culinária amazônica pode permear um publico muito mais amplo. Para uma fração crescente dos consumidores, um ingrediente é um vetor de outros significados, de uma paisagem de uma cultura, de uma forma de produzir. O mercado de gastronomia – como o de cosméticos, seu parente próximo - não vai salvar a floresta, mas pode dar uma mão para valorizar e remunerar os “produtores de ingredientes” não só pelos itens de qualidade que as comunidades indígenas forem capazes de fornecer regularmente, mas pelo agregado do “conjunto da obra”, dos saberes e das plantas domesticadas e cultivadas, florestas e roças que construíram e melhoraram por séculos.
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Beto Ricardo é coordenador do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA); Laure Emperaire faz parte do Institut de Recherche pour le Développement (IRD)

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