quarta-feira, 7 de setembro de 2011

TASMÂNIA -
um terroir desconhecido, sensacional e delicioso
queijos artesanais na ilha gourmand da Austrália

 42° 52' 50"S 147° 19' 30" E

Durante um jantar com amigos e com o chef Neill Perry em seu restaurante Rockpool em Sydney, conheci dois entusiastas da alimentação de qualidade, Eduardo e Kristian Juanas. Eles trabalham com produtos artesanais e nativos da Austrália. Entre ótimos vinhos Shiraz do incrível terroir de Barrosa, estávamos conversando sobre experiências sensoriais, quando ouvi a historia de um pequeno produtor rural na remota ilha Bruny no sul da Tasmania. Logo percebi que estávamos conversando sobre um artesão do sabor, o primeiro produtor de queijos de leite cru da Austrália. Fiquei entusiasmado equis saber mais detalhes . Eu já estava cogitando a possibilidade de ir visitá-lo.
No mesmo jantar o chef Perry falou sobre a sua última food trip na extraordinária e pequena ilha da Tasmânia, o menor estado Australiano, e também o mais rico em biodiversidade gourmand. Hobart, a capital da Tasmania fica somente a uma hora de vôo de Sydney. Fui dormir tentando adivinhar os sabores dos queijos da Tasmânia. No dia seguinte logo cedo eu já estava no telefone tentando encontrar o Nick Haddow, o artesão de quem o Ed havia falado na noite anterior. Encontrei um número de telefone e deixei alguns recados. Para a minha alegria, na mesma tarde o Nick ligou. Ele é o fundador e cheesemarker do laticínio Bruny Island Cheese Co. Batemos um papo ao telefone e marcamos um dia para almoçarmos juntos em seu laticínio.   


Cheguei em Hobart, a capital da Tasmania numa quinta-feira de manhã. No pequeno aerporto de Hobart aluguei um carro e fui até o centro da cidade. Eu havia marcado com o Nick no dia seguinte, então teria um dia para descobrir os encantos gastronômicos da Tasmânia.  


Lembrei-me das dicas do Neill sobre a qualidade e o frescor das frutas e verduras. Soube também que a Tasmania tem um dos áres mais puros do planeta. Todos os sábados no bairro conhecido como Salamanca, acontece todos os sábados o mercado-produtor com o mesmo nome, que reúne fazendeiros e produtores rurais locais, que se encontram para celebrar a boa mesa, ingredientes sazonais, gostosos e o prazer de trabalhar da agricultura a mesa. Existem pequenas e médias fazendas na Tasmania, com seus artesãos sensacionais, criando boutique farming em quase todos os cantos da ilha-estado. 

Nas proximidades do mercado Salamanca, existe um gourmet shop sensacional, chamado Wursthaus Kitchen. Na loja conheci o Peter Trioli, um profissional de alimentação premium da velha guarda, que trabalha com ingredientes de qualidade e origem desde 1975. Eu nem havia nascido ainda! Durante um papo dentro de sua loja, Peter contou que passou um período na Inglaterra e na Austrália, antes de comprar a loja em Hobart em 2003. Criada em 1985 a Wursthaus Kitchen ficou famosa em toda a Austrália por seus embutidos artesanais e cortes nobres de carne fresca. Os funcionários da loja são em sua grande maioria açougueiros, cozinheiros, sommeliers e gastrônomos que adoram comer bem e encantam os clientes nas conversas sobre métodos de produção de matérias primas, o cuidado com a fileira completa do alimento e harmonização.  


Os ingredientes da Tasmania são muito requisitados por restaurantes locais, mas também por chefs consagrados no mundo. O chef Japonês-Australiano Tetsuya Wakuda por exemplo, é um deles. Um dos grandes nomes da gastronomia no mundo, ele visita a Tasmania frequentemente, adora os ingredientes “boutique” de pequenos produtores rurais e sempre tem tempo para um café com o Peter. Amigos há muitos anos, Peter dizia com orgulho que Tetsuya faz parte de uma elite de chefs estrelados internacionalmente que tem como filosofia valorizar sabores simples e técnicas de preparo que valorizam as matérias primas, o trabalho dos produtores rurais.  A cultura agrícola local valoriza os sabores bons, limpos e justos, como diria o professor Petrini. A ilha produz frutas, principalmente berries que são vendidas frescas. Ate mesmo trufas negras = que acredito sejam melanosporum - começaram a ser encontradas perto das cidades de Hobart e Lauceston. Queijos extraordinários, leite, cremes e também fazendas beneficiadoras de carnes da raça Wagyu, carnes de caça, produção de mel nativo, azeite de oliva, wasabi, salmão fresco, abalone selvagem e ostros são alguns dos ingredientes de qualidade da Tasmania.

A cultura do azeite extra virgem de oliva está muito presente hoje em dia na Tasmania. As primeiras mudas de oliveira chegaram à ilha por volta de 1950 trazidas por imigrantes europeus. As primeiras variedades de azeitonas plantadas na Tasmania foram Frantoio, Barnea, Verdale, Manzanilla e a americana Mission. São azeites deliciosos que aos poucos começam a ganhar o cenário mundial. Em 2005 alguns produtores locais criaram o Tasmanian Olive Council, um conselho regulador da qualidade e origem dos produtos. Estima-se que hoje em dia existam mais de 150.000 oliveiras plantadas na região sul da ilha. Alguns promissores azeites do terroir da Tasmania tem chamado a atenção em competições sensoriais na Europa. 

Neste mesmo papo com o Peter, ele me mostrou as famosas ostras da Tasmania, cultivadas em todas a costa da ilha. Pelo interesse e ótimo feeling durante o papo, ele decidiu me levar de carro a um lugar chamado Barilla Bay, uma linda enseada a 14 km de Hobart, onde um produtor local amigo seu, de quem o Peter compra todas as semanas ostras frescas, nos recepcionou para uma degustação. Que delicia! As ostras do Pacifico (espécie crassostrea gigas) que são cultivadas na Tasmania já são uma realidade sustentável hoje, onde cerca de 70 produtores em diversas partes da ilha cultivam e comercializam aproximadamente 4 milhoes de dúzias por ano. 


Na volta da fazenda de ostras, o Peter perguntou se eu sabia da existência de um mel nativo da Tasmania. Muito legal. Eu estava enlouquecido e muito feliz com as sensações locais. Fantástico. Na verdade eu conheci o Leatherwood honey pela primeira vez na Itália, porem não sabia exatamente o que era e o que representava. Soube então que o néctar da flor da árvore leatherwood (Eucryphia lucida) ou grass tree em inglês, produz um mel muito gostoso, com uma textura cremosa, notas aromáticas de bálsamo, frutas cítricas e flores brancas. Esse mel possui uma acidez baixa e é um pouco mais liquido do que o mel europeu. De alguma forma, poderíamos ate compará-lo com o nosso mel nativo do Brasil, das abelhas canudo no Satere Mawe na Amazonia pela sua consistência mais líquida. O leatherwood é uma planta / árvore autóctone da Tasmania encontrada nas florestas encharcadas no lado oeste da ilha. Mais de 70% do mel produzido na Tasmania é leatherwood. 


Acordei cedo na sexta feira, peguei o carro e fui sozinho atá a ilha Bruny encontrar o Nick. Na minha frente duas horas de carro e ferry boat em direção ao sul, passando por um terroir lindíssimo, com muitos albatrozes. Quase um cenário esquecido no tempo. Chegando perto da balsa que me levaria ate a ilha Bruny, passei por um terroir surreal, repleto de parreiras chamado Huon Valley. Não tive como parar desta vez, mas ainda volto por lá para provar os vinhos biodinâmicos. Aliás, a industria de vinhos da Tasmania começou a ser desenvolvida no começo da década de 1970. Com um solo argiloso o setor vitivinicola local se caracteriza por uma produção boutique de vinhos artesanais, feitos com uvas chardonnay, riesling e pinot noir, porem também Shiraz como na Austrália. Nos últimos anos com o crescimento do turismo rural, muitas vinícolas da Tasmania começaram a criar food trips e programas culturais para oferecer ao visitante uma experiência completa, com acomodações boutique, tour nos vinhedos e caves.


Ao lado de outra fazenda de ostras, o laticínio do Nick é cercado por arvores. O lugar é pequeno, porém muito bem arquitetado. São três estruturas construídas, o laticínio, o Artisan Cheese Shop e a casa, onde ele mora com a mulher e o filho de 2 anos. Muito simpático com mais ou menos 40 anos, ele estava ao lado de fora do cheese shop me aguardando quando cheguei. Nos conhecemos e fomos direto ao laticínio. O Nick Haddow nasceu e formou-se em hotelaria na cidade australiana de Adelaide. Logo cedo, fascinado com o sabor de queijos artesanais, resolveu viajar para estudar e aprender técnicas italianas, espanholas, francesas e inglesas de preparo e temperaturas de cremes e queijos. Durante 10 anos ele trabalhou nas cidades italianas de Caserta e Battipaglia, em Londres e Melbourne. Achei muito bacana também e interessantíssimo um projeto que ele me contou sobre melhoramentos produtivos e sensoriais em um pequeno laticínio nas montanhas ao sul da Índia, a 4000 metros de altura perto das montanhas Annapurna no Nepal. 


Hoje em dia ele trabalha com 3000 litros de leite cru por semana, produzindo 10 toneladas de queijos artesanais por ano.  Dentro do laticínio é tudo muito bem organizado. O que me chamou a atenção foram as quatro salas de descanso e maturação de queijos ao fundo da sala de produção. Na porta de cada uma delas, um letreiro dizendo “White moulds” ou moldes brancos, “Washed Rinds” ou cascas escovadas, “Cooked Curd” massa cozida e a sala do “Tom”. Cada sala é utilizada em épocas especificas do ano, de acordo com as propriedades organolépticas do leite local. Achei sensacional as pequenas salas, com prateleiras de madeira repletas de formas de leite se transformado em deliciosos queijos dos mais diversos tipos. Foi ótimo conhecer a produção.


Saímos do laticínio e nos sentamos no jardim para conversar antes da degustação. Entendi que as condições climáticas favoráveis e melhor temperadas do que na Europa, propiciam ao gado local, formado em sua maioria por Jersey e holandês, pasto fresco o ano inteiro sem a necessidade de complementar a alimentação com ração industrial. O Nick comentou brevemente sobre a escassez de bons insumos para produtos lácteos no mundo hoje. Ele tem trabalhado com coalho animal porem em alguns queijos prefere usar o coalho vegetal.


Após mais de duas horas de um ótimo papo, fomos ate o cheese shop onde a sua mulher havia preparado uma linda degustação para nós. Praticamente todos os queijos produzidos por eles estavam na mesa. Alem do delicioso leite fresco dos rebanhos próximos ao laticínio, o Nick também utiliza leite de cabra para alguns queijos. Um dos diferenciais sensoriais dos seus queijos além das sensações belíssimas na boca são os nomes dados por ele aos produtos .. O.d.o, Oen, Otto, Mr Palomar, Lewis, The Bastard, 1792, Gabriel, Tom e C2. Pode ate parecer estranho, mas cada um deles tem uma historia para contar, quase um romance do sabor que ele sempre conta quando explica como os queijos são feitos. 


BRUNY ISLAND CHEESE CO.
Alguns dos meus queijos favoritos são; 

1792
O ano em que os franceses chegaram na Tasmania. Um queijo macio de leite bovino, maturado em pranchas de pinheiros do terroir de Huon. É um produto artesanal de coloração rosa-alaranjado, resultado das formas serem escovadas com água e sal regularmente para estimular as bactérias na casca, responsáveis pelos complexos sabores e aromas

C2
É um queijo clássico também de leite bovino, que chega a ser envelhecido por ate 12 meses para desenvolver suas qualidades sensoriais, com um doce aroma e sabor amendoado.

OEN
Um queijo delicioso, cremoso e sem igual. É um dos preferidos do Nick. É um queijo de leite bovino que com alguns dias recebe uma lavagem com vinho de uvas pinot noir, antes de ser embrulhado em folhas de parreiras para a maturação.

SAINT
Um queijo que pode ser consumido tanto fresco para um sabor delicado de leite, com seu interior macio e casca branca, como também envelhecido ate quatro meses para sensações mais complexas. Seu nome vem da região central da França, onde pequenos vilarejos batizam seus queijos a partir de nomes de santos locais.

TOM
O Nick começou me contando sobre esse queijo dizendo “É um cara simples!”. O Tom é um queijo de leite bovino, curado e com a casca natural, muito gostoso e famoso no norte da França (tomme) e norte da Itália (toma). É um queijo fácil porem com uma técnica de maturação complexa.

GABRIEL
Produzido com 100% de leite caprino, é um queijo fresco e macio


“Os queijos que eu faço são produtos das minhas food trips e treinamento profissional nos terroirs de queijos artesanais mais importantes na França, Itália, Espanha e Inglaterra. São queijos que eu adoro fazer e comer. Estes queijos sao tambem unicos da Tasmania. Eu prezo por um estilo artesão e tradicionalista, que reconhece que queijos fantásticos foram feitos durante séculos antes da tecnologia moderna ser utilizada, e acredito apaixonadamente na maneira antiga e tradicional de fazer e envelhecer queijos. Para mim, cheesemaking é uma busca por integridade, autenticidade e sabor.”  
- NICK HADDOW


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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura & comunicação alimentar e sócio-fundador do estúdio boutique de pesquisa e inovação no agronegócio e gastronomia estilogourmand ltda, com escritórios no Rio de Janeiro e Madrid

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