relíquias gastronômicas da Emília-Romagna
Um dos tesouros culinários da Itália é o Vale do Rio Pó, localizado ao norte da região Emilia-Romagna, composta por nove províncias, entre as quais estão Parma, Modena e a capital Bologna. O Vale talvez possua mais matérias-primas e curiosidades gastronômicas do que qualquer outra área do país.
Na zona entre Reggio Emilia e Parma, artesãos produzem o delicioso queijo Parmigiano Reggiano, nas colinas de Langhirano. E por toda a planície Parmigiana é produzido o famoso Prosciutto di Parma. Já em Zibello foi criada uma das relíquias mais bem guardadas da Itália: o Culatello, feito com a parte mais nobre da coxa do suíno.
A abundância de sabores deve-se ao microclima com verões úmidos e invernos sob constante neblina. Essas condições são ideais para aumentar, naturalmente, as propriedades organolépticas e criar excelentes características durante o envelhecimento de queijos e embutidos, que ficam, geralmente, pendurados nas janelas. E também influencia na qualidade das uvas que crescem nas colinas para a produção do vinho local.
Artesãos e produtores da Emília-Romagna compreendem bem o conceito “filiera integrata”, baseado no aproveitamento e uso criativo de co-produtos das matérias-primas. Para esses trabalhadores é motivo de orgulho transformar o excedente em ingrediente premium
aceto balsamico tradizionale di Modena
O vinagre é um ingrediente essencial em diversas culturas alimentares, utilizado desde à antiguidade como condimento, aromatizante, conservante e medicamento. Sua produção sempre acompanhou a tradição do vinho, em terroirs onde as uvas crescem em perfeito equilíbrio. Na maioria das línguas ocidentais, a origem da palavra vem do francês vin aigre (vinho azedo). Em italiano, o aceto vem do latim acetum (azedo) e pronuncia-se “atcheto”, ao invés de “acceto”, como é chamado no Brasil.
Os melhores vinhos da Emília-Romagna são feitos com as uvas locais Lambrusco e Trebbiano. O mosto da uva, um co-produto do vinho, é cozido e envelhecido para extrair o terceiro produto mais valioso da região: Aceto Balsamico Tradizionale di Modena. Nessa rica cidade, a tradição de produzir vinagre é transmitida de pai para filho e preservada por gerações.
Em 1993, a região de Modena foi a primeira a criar uma associação, com o objetivo de assegurar a qualidade e origem do produto. O Consorzio Aceto Balsamico di Modena certifica por meio do D.O.P. (Denominação de Origem Protegida) não apenas o produto, mas a zona de produção, produtores, matéria-prima, marca e comunicação.
A entidade também administra aspectos legais, políticos e burocráticos. De acordo com o Consorzio, o termo balsâmico aparece em documentos oficiais da cidade, por volta de 1747, e está associado às propriedades terapêuticas.
balsâmico, co-produto nobre do vinho
O aceto é produzido com o mosto, suco que resulta da prensagem das uvas. Depois de o líquido ser reduzido pela metade é levado para envelhecer em barris de carvalho ou cerejeira. Em cinco meses, aproximadamente, começa a evaporação e redução. O balsâmico se difere dos outros vinagres porque não existe o processo de fermentação nos primeiros estágios. Por isso, o açúcar se mantém intacto.
O método de acetificação utilizado é o D’Orleans, o mais antigo, datado de 1670. Consiste em transferir o mosto de um barril para outro em intervalos regulares até surgir o verdadeiro Aceto Balsamico. O tamanho dos barris também variam, sempre do maior para o menor. Como estes recipientes não são lavados, concentram o amora na madeira. Por isso, essa troca é feita sempre em tonéis com o mesmo tipo de madeira para seguir a mesma linha sensorial.
fonte: ROSSO, Modena www.rosso.mo.it
De acordo com as regras do Consorzio Aceto Balsamico di Modena, o mosto principal (primeira prensagem das uvas) deve aguardar entre 12 a 15 anos para se classificar como Aceto. Entretanto, alguns produtores utilizam o método especial de decantar o líquido em pequenas quantidades para produzir o ano todo. O aceto pode ser maturado por mais de 25 anos.
O vinagre é “balsimificado”, técnica que consiste em apurar as notas mais florais e concentrar os aromas. A consistência final é similar a um xarope. O autêntico Aceto Balsamico é encorpado, denso, com textura de veludo. É a concentração máxima da essência do mosto, puro bálsamo, perfumado, doce, agradável e penetrante.
aceterias balsâmicas
Visitei algumas aceterias ou vinagreria que produzem o verdadeiro Aceto Balsamico. A cultura do vinho disseminou o prestígio para desenvolver com primor e qualidade, produtos tão valorizados quanto à bebida. Sergio Merlino mora numa cidade próximo à Barolo, situada ao noroeste da Itália, na Província de Cuneo, região do Piemonte. Com aparência e nome de mago ele faz alquimias na Aceteria Merlino. Ele começou a produzir vinagre de forma intrigante e mágica.
Há cerca de 30 anos, na pequena biblioteca destruída de uma cidadezinha chamada Canela, Merlino encontrou entre os destroços sua fórmula mágica ou receita de aceto. Depois de encontrar essa relíquia, ele iniciou a produção do Berg o’p Soom, um balsâmico à base das uvas Moscato e Barbera, com perfume florado de acácia e sambuco. É acidificado por três anos e maturado em cascos de carvalho.
Em Montova, cidade próxima à Emilia-Romagna, coberta por uma forte e encantadora neblina, conheci a senhora Elda Megazzoli. Em sua aceteria de médio porte, ela produz vinagre orgânico de maçã doce, mantendo todas as técnicas e tradições milenares. Próximo a Alba, descobri a Aceteria Rosso, que produz com uvas locais chamadas Así (dialeto piamontês). O aceto é maturado em barris de diferentes madeiras como castanheira, amoreira e cerejeira. O processo se diferencia por depositar o mosto em tanques, expostos ao ar livre, durante o Verão. Com isso, a acidificação acontece naturalmente e devagar.
outras rotas do balsâmico
Seguindo para a Espanha, encontrei aceto em Jerez de la Frontera, município da Espanha, na província de Cádiz, comunidade autônoma de Andaluzia. A região é conhecida pela produção do Sherry, o mais famoso vinho doce espanhol. Mas o senhor Jose Francisco Sabater, proprietário da La Andaluza, produz vinagre com as uvas Pedro Ximenez (uma das mais antigas do mundo); e Palomino (uma das mais clássicas da região).
Depois da colheita, Sabater coloca as uvas para secar ao sol com a finalidade de desidratá-las. É o mesmo método utilizado na fabricação do Sherry. O mosto é maturado em barris franceses de cerejeira, utilizados por até 30 anos. Este balsâmico de cor âmbar tem 7% de acidez. É macio na boca, equilibrado com um toque de frutas frescas e cascas de cítricos.
bálsamo para o paladar
Os connoisseurs apreciam o aceto pela história de cada produtor e seu terroir, o tipo de uva, as técnicas de envelhecimento e o sabor. A redução do mosto produz notas completamente diferentes e sabores multidimensionais. Esses vinagres não são indicados para cozinhar, mas para finalização. Ao aquecê-los, corremos o risco de perder a excepcional qualidade do aroma. É comparado à trufa branca, por exemplo, que finaliza preparações. Combina com queijos fortes e frutas. Realça o sabor em carnes cozidas.
Na Itália, pode ser encontrado até como topping para sorvete, geralmente, de baunilha. E, ainda, servido como digestivo após a refeição, com a mesma função de um vinho doce. Apesar de hoje o aceto balsâmico ter produção em massa e ser acessível, os vinagres desses produtores são extraídos em pequenas quantidades. A geografia de cada lugar que faz com que as uvas cresçam de maneira diferente, assim como permite a utilização de processos de envelhecimentos distintos. É a essência do mosto, puro bálsamo. O ideal é apreciá-los da maneira mais simples para lembrar a maneira como foram produzidos.
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Paulo A Lima é gastrônomo profissional, carioca e um dos diretores do projeto LA Organic, em Madrid
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