Por mais de quatro anos, ouvi incríveis histórias sobre a cultura, a gastronomia e os hábitos alimentares da pequena ilha de Taiwan. Até que em meados de maio de 2009 resolvi conhecer o país, convidado pelo amigo e gastrônomo profissional Andrew Che Hao Chang.
Taiwan é uma pequena ilha localizada perto da costa de Hong Kong. Apesar da ilha ter se chamado Formosa durante muito tempo, por motivo da colonização portuguesa por volta de 1544, Taiwan é um país independente e apenas mantém alguns vínculos econômicos e culturais com a China.
Tive a oportunidade de conhecer e aprender aspectos gastronômicos dessa cultura milenar. Chegamos à cidade de Taipei em uma noite estrelada e fomos direto conhecer o mercado noturno de Ningxia. Esse é o mercado mais importante de “street food” de Taipei, e um dos mais importantes da Ásia. Andando pelo mercado, pude perceber a riqueza de ingredientes e sabores. Andrew me levou nos melhores vendedores do mercado, onde experimentamos alguns clássicos da culinária local; as deliciosas omeletes com ostra, arroz com porco assado e chegamos a experimentar também o doce Mochi, além dos bolinhos crocantes taro, conhecido também como torta de feijão vermelho. O mercado noturno de Ningxia tem 60 anos de história. No início era um mercado dedicado a pequenos produtores agrícolas dos arredores de Taipei e vendedores de comida. Hoje em dia, vendedores de tecidos e roupas também fazem parte da cooperativa que administra o mercado, por causa dos surgimentos de grandes lojas de departamentos na capital do país.
Durante a visita, encontramos Lai Bing-xun, o responsável da cooperativa que administra o mercado. Bing-xun nos contou que o mercado tem mais de 200 barracas e sua grande maioria ainda vende comida. O mercado se estende por quase 300 metros na Rua Ningxia. Achei incríveis os hábitos de vendedores e compradores pela simplicidade de alguns, pelas tradições de preparo dos ingredientes e pelo sorriso fácil de quem degustava alguns dos “snacks”.
No dia seguinte pela manhã, fui surpreendido por uma notícia do Andrew. Tínhamos um café da manhã marcado com a celebridade gastronômica de Taiwan. De volta a Taipei depois de seis anos entre a Europa e a China, A-Jiao Zhuano é a chef e dona do famoso restaurante Cest’bon, no bairro de Zhong Shang. Um papo incrível sobre matéria prima local, sustentabilidade culinária, azeites, mas principalmente sobre a cultura do chá. A-Jiao me explicou que por causa da excelência do cultivo e preparo do chá artesanal, Taiwan foi por muito tempo conhecida como “Eastern Beauty”, nome também de um chá bem famoso produzido na ilha. A-Jiao é uma tea master que passou a vida toda pesquisando os melhores terroirs de chá em Taiwan e no mundo. Durante a conversa, percebi que precisaria ficar por lá no mínimo uns três anos para conhecer tudo que gostaria, mas como tínhamos pouco menos de uma semana, decidimos que iríamos priorizar algumas aventuras de geografia gastronômica dessa vez, focando principalmente na cultura do chá.
a viagem
Começamos então a criar e decidir um itinerário. A-Jiao explicou que iríamos visitar um amigo seu, chamado Gao Dingshih. Saímos de Taipei numa quarta-feira ensolarada, rumo à área de Shihding, sul do país, perto das montanhas de Ping lin. No caminho para conhecer a plantação de chá do Sr. Dingshih, não tínhamos como não parar e visitar o famoso Museu do Chá. O Museu do Chá da cidade foi aberto em Janeiro de 1997 e é o maior museu de chá do mundo. Fica localizado no centro do pequeno vilarejo de Ping lin, no coração das montanhas de Taiwan. O museu tem exposições permanentes que incluem aspectos da produção, transformação e tipos de chá, objetos antigos relacionados à produção e ao ritual de servir-lo, assim como aspectos culturais da arte do chá em Taiwan. Já dentro do museu, A-Jiao nos contou um pouco sobre a história do chá, sua produção e vários aspectos muito curiosos sobre como o chá faz parte marcante da cultura e história do Taiwan e da China.
A China e a Índia são os locais de origem do chá, como conhecemos os arbustos altos e verdes. A planta do chá pertence à família das Camélias. Hoje em dia sabemos que existem mais ou menos 380 espécies diferentes de Camélias em todo o mundo. A-Jiao contou também que na sua busca pelos melhores terroirs do mundo, encontrou plantas ainda selvagens perto da montanha de Mai-Yuan a 1400 metros do nível do mar.
os ingredientes e as variedades do chá
Descobri que entre os ingredientes principais do chá encontramos água, proteínas, os aminoácidos, carboidratos, substâncias minerais, vitaminas, entre outras. O chá é um excelente antioxidante natural. Além de prevenir a variação das células, contribui para a redução do colesterol e prevenção da pressão alta, alem de controlar o açúcar no sangue.
Apesar de cada dinastia chinesa ter tido sua própria classificação, hoje em dia não só a China mas Taiwan também têm seus próprios standards de qualidade de chá. A China hoje em dia possui uma classificação onde distingue seis sistemas ou tipos de chás; chá verde que tem uma história gloriosa entre todos os chás e não é fermentado; Chá preto que é um produto fermentado; Chá fresco ou Oolong, que é semi-fermentado; Chá branco que é ligeiramente fermentado e é o meu favorito; Chá amarelo levemente fermentado e sua produção é muito parecida com o chá verde; E finalmente o chá marrom ou Pu’Er que além de fermentado, muitas vezes é envelhecido. Espero ter a oportunidade de escrever sobre o chá Pu’Er. É um chá sensacional, intrigante e com uma história surreal relacionada às viagens dos produtores de chá, desde a província de Yunan no sul da China, atravessando o Himalaia até o maior mercado de chá do mundo na cidade de Lhasa no Tibet.
Em Taiwan as variedades cultivadas são sete. Oolong, green heart; Oolong com folhas inteiras; Da-Mou, green heart; chá rústico, red heart; Asamour Da-Mou, red heart; e Oolong amarelo. Em 1969, o Departamento de Desenvolvimento de Chá do governo de Taiwan desenvolveu duas novas variedades; uma chamada Jin sin ou chá n° 12 e o chá Jade n° 13. A história, as origens, as variedades, as classificações e os sabores dos chás são tantos que A-Jiao achou melhor deixar alguns outros temas para uma próxima vez e focar naquele momento em seguir viagem para chegarmos ao terroir de chá de Gao.
Continuamos montanha acima rumo às colinas verdes de Shen Keng, um lugar espetacular a 600 metros do nível do mar, onde a natureza ainda parece intocada. Eu não fazia idéia da riqueza da história da família do Sr. Gao. Há 1000 anos atrás, a família que já cultivava camélias e produzia chá nas encostas verdes do município de Anxi, na província de Fujian, na China, se mudou para as colinas de Shen Keng na ilha de Taiwan. Encontramos Gao na estrada Hengping perto da sua plantação. Gao tem aproximadamente 40 anos, é simpático, mas muito tímido. Fomos direto a primeira parte da plantação, conhecer as plantas mais jovens que ficam na beira de uma estrada. São plantas menores de uma variedade de camélia que ele trouxe da China há dez anos atrás. Alias, A-Jiao visita as plantações de chá do Gao há 20 anos. Em 1990 ainda em Xangai, ela experimentou pela primeira vez o Oolong Gu-Dian que ele produz e se encantou com as notas sensoriais, apaixonando-se pelo sabor. As colinas de Shen Keng são banhadas pela nascente do rio Ji Long. A umidade alta é essencial para a saúde da Camélia e qualidade do chá. O solo onde estão as camélias de Gao é composto basicamente de limestone e argila amarela. Eu não conseguiria classificar a agricultura de Gao como orgânica ou biodinâmica.
Ele nos mostrou com muito orgulho a riqueza natural do solo, arrancando com as próprias mãos uma planta alta de capim para que pudéssemos ver a cor da terra. Incrível! Gao não usa sapatos. Quando perguntei o porquê, ele simplesmente deu um sorriso e disse que não existe melhor maneira de estar em contato com o terroir e sentir a forca da terra, e que aprendeu isso ainda criança com o seu avô.
A propriedade de Gao tem 1 hectare, ou 10.000 metros quadrados no total onde ele produz somente 100 quilos de chá por ano. Com uma das heranças familiares mais ricas da China, Gao se tornou um expert em Oolong. Atualmente a sua produção é totalmente vendida anos antes da própria colheita. Para termos uma idéia, 600 gramas do seu chá mais apreciado, o Oolong Gu-Dian, são vendidas por US$ 300 em algumas capitais do mundo.
Durante esse dia espetacular com A-Jiao, Gao e Andrew, pude conhecer algumas características importantes sobre a colheita e produção de chá. Assim como o vinho e o azeite, os sabores e aromas do chá mudam de acordo com as condições climáticas a cada ano. Dentre os chás produzidos por esse autêntico artesão do sabor, destacam-se o Oolong Wang Shiu, uma homenagem aos pais, e o Oolong Gu-Dian, um dos melhores chás do mundo. Gao nos convidou para uma degustação e fomos conhecer o seu atelier, uma pequena casa próxima a sua onde mora com a mulher e seus dois filhos, onde ele produz chá. Algumas das ferramentas utilizadas para o cultivo e transformação do chá são seculares, como a grande panela de aço que pertencia ao pai do seu avo. Gao ainda hoje utiliza a mesma panela de aço para acelerar a fermentação, oxidando gentilmente as pontas das folhas da camélia para criar o Gu-Dian Oolong, sempre com fogo baixo. Ele explicou que esse processo é necessário para quebrar as enzimas e potencializar os sabores presentes nas folhas da camélia. Achei bacana saber que um de seus segredos é colocar as folhas para secar ao sol por dois dias. Segundo ele, esse processo contribui para que o chá fique com um leve gosto de manjericão e um aroma redondo, parecido com mel.
a água e o chá
No inicio da degustação, Gao comentava sobre a importância de utilizar uma água excelente para fazer o chá. Estávamos prestes a experimentar uma água rica em minerais e macia, vindo da nascente do rio Ji Long. Uma delicia. Cheguei a lembrar da maravilhosa água do Monte Latari perto de Batipaglia no sul da Itália, onde as búfalas bebem uma das melhores águas da terra e os queijos são sensacionais. Não só a importância da água é fundamental para um bom chá, mas também a troca das águas na hora de servir e a intensidade dos aromas e sabores de acordo com cada seção de água. Aprendi alguns dos rituais de servir e beber chá. Em geral, a primeira água é utilizada somente para abrir as folhas e iniciar o processo de infusão. Gao não bebe chá da primeira água. Já na segunda, os aromas e sabores começam a aparecer de forma marcante, principalmente as notas florais. De acordo com o artesão do sabor, com os seus chás poderíamos ir tranquilamente até dez ou mais águas sem trocar o chá. Outro ponto importante é a temperatura da água. Ao contrário do que muitos acreditam, Gao insistiu que a melhor maneira de fazer chá e sempre com água a 50°C, e não a 80°C. Encontrei varias notas sensoriais durante a degustação que me surpreenderam pela variedade e nuances. Mas deixei o melhor para o final.
o tesouro
Depois de horas de degustação e quando pensava que já estaríamos voltando para Taipei, Gao contou a A-Jiao que estava indo buscar dois de seus maiores tesouros. Então vimos que ele procurava dentro de um buraco na parede, que ele chama de cofre, alguns retalhos de pano. Ele sentou-se novamente e abriu os panos velhos, quase trapos, com uma espécie de folha seca dentro. Quando perguntei o que havia de tão especial nesses chás, Gao não conteve as lágrimas e contou feliz da vida que eram dois Oolongs Gu-Dian. Até ai tudo bem, eu estava feliz por continuar a degustação, mas não tinha entendido as lágrimas. Quando ele finalmente começou a contar como foram colhidas e por quem, me juntei a ele na emoção. O primeiro era um Oolong Gu-Dian que foi colhido e produzido por seu pai há quarenta anos atrás, um chá gostoso, com notas de terra molhada e um leve sabor de couro no retro gosto. O segundo, também um Oolong Gu-Dian, mas produzido por seu avo há mais de setenta anos, somente com folhas de plantas camélias com mais de cem anos de idade. Era um chá com aromas fortes, intensos, mas interessantíssimos, levando a minha imaginação a encontrar notas aveludadas de cogumelos selvagens e um leve frescor de menta no final.
“Preparar ou fazer chá é muito mais do que simplesmente preparar uma bebida. É uma emoção e a pura expressão da hospitalidade, fazendo amigos e sendo honesto”. Gao Dingshin
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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura e comunicação alimentar, carioca e fundador do projeto www.ifoodorigin.com
5 comentários:
Olá Paulo!
Que matéria linda!
Parabéns!!!
Esta cultura é realmente incrivel!!!
Vou fazer um chazinho aqui!!! he,he,he!!!
Um beijo grande!
Mari
Paulo, incrível! Matéria ótima. Depois de ler vou ficar com vergonha de tomar o velho chá de saquinho, e com água fluoretada carioca...
Gostei muito da matéria, Paulo, em boa parte porque já sou uma apaixonada por chá. Fiquei daqui tentando imaginar as notas de sabor que descreves. Sem falar que deve ter sido uma viagem riquíssima em termos de aprendizado cultural!
Bj
Patrícia
Ola gostei muito da sua viagem,,,tbem irei esse ano a Taiwan,,,gostaria de poder fazer um tour parecido com o seu,,,continue sempre com suas materias,,,sao maravilhosas😀
Ganhei um chá de Taiwan. Gostaria de saber que tipo que é.
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