terça-feira, 5 de outubro de 2010

Dia de Cachaça

Na tevê, vejo meu amigo Vicente Bastos ser entrevistado. O repórter diz que ele é mestre cachaceiro, não por muito beber mas por tudo entender do assunto. E por ser fabricante de produto da mais alta qualidade. Ele conta a história da aguardente de cana, criação brasileira original, que teve sua produção aqui proibida pelos portugueses, que não desejavam concorrência para o seu destilado, a bagaceira. Nossa independência cachaçal veio muito antes da política, que comemoramos em 7 de setembro de 1822 mas os bahianos, parece que com razão, celebram no 2 de julho de 1823.


> engenho de açúcar, por Henry Koster


O fato é que resolveram que o 13 de setembro, mesma data em que morreram Montaigne e Dante Alighieri, passou a ser o dia da birita pátria. Para chegar a esse status e ter até Academia em terras cariocas do Leblon e da Barra, a água-que-passarinho-não-bebe sofreu com o desprezo e a discriminação de muita gente. Era a bebida dos escravos, comentavam os preconceituosos. Mas quem dela tivesse experiência, logo se rendia aos seus encantos.

O nome da mais difundida e vulgar bebida no âmbito popular, diz Câmara Cascudo, veio de
Portugal. Desde o final do século XVI ela era produzida em terras brasileiras. Nas Cartas Chilenas, de Cláudio Manoel, ela estava presente: “pois a cachaça ardente que o alegra lhe tira as forças dos robustos membros”.



Saint-Hilaire já dizia, em 1819, “a cachaça é a aguardente do país”. Tornou-se nacional com os movimentos políticos em prol da independência. Era considerada a bebida dos patriotas, que a degustavam, recusando-se a beber os vinhos portugueses. Os avós e pais de minha infância sempre tomavam um cálice, antes das refeições. Menor e mulher não participavam dessa cerimônia. Jovem, já adulto, era sempre chamado pelo meu querido vizinho, Alberto Loyola, para tomar unzinha com ele, antes do almoço. A abrideira era convite para uma boa conversa matutina.

Sica Sica, chofer do ônibus Getúlio Vargas, parava seu veículo, com o motor ligado e os passageiros lá dentro, virava a esquina, entrava no boteco e em cima do balcão já encontrava um copo da pura e forte que jogava goela abaixo. Retomava suas funções calmamente e só os que o conheciam entendiam o que se passara. Lá ia ele rumo à cidade ou ao bairro.


Hoje, o nosso destilado é fabricado com o que há de mais moderno, sem chumbo e com muito carinho, apuro, higiene. Ganhou apreciadores mais sofisticados, degustado com o cuidado de bebida fina. E conquistou o paladar e o amor das mulheres. Inebriante, segue em busca de ganhar o mundo.

FIM.


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Fernando Brant é apaixonado por cachaça, letrista e nasceu em Caldas MG. Trabalhou como repórter da sucursal de O Cruzeiro até o começo da década de 1960, quando conheceu Milton Nascimento e começaram a compor juntos.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Uma dúzia de ovos por US$ 8, um papo com Michael Pollan

Na semana passada li uma ótima entrevista do Michael Pollan sobre a matemática de comprar produtos locais e resolvi traduzí-la para o português. Pollan fala sobre a compra de alimentos no dia a dia, sobre procurar comer produtos da estação e também sobre porque o pagar mais por alimentos de qualidade faz sentido economicamente. Para quem não sabe, Pollan é americano, morador de São Francisco Bay na Califórnia e autor, entre outros livros, do best seller "O Dilema do Omnivoro". Ele se tornou um dos líderes intelectuais da idéia de comprar produtos sazonais e produzidos localmente por produtores rurais.

O artigo original foi escrito por Ben Worthen e publicado no Wall Street Journal;
http://online.wsj.com/article/SB10001424052748704271804575405521469248574.html?mod=WSJ_hps_MIDDLEFifthNews

Hoje em dia já temos certeza que os alimentos produzidos localmente - sem o uso de defensivos nem fertilizantes químicos - são mais saudáveis para nós e são melhores para o meio ambiente; no entanto, muitas vezes eles são muito caros. Pollan explica que o verdadeiro problema na nossa cadeia alimentar mundial é o fato dos subsídios econômicos manterem os preços de alimentos produzidos em larga escala artificialmente baixos. Esses alimentos mega industrializados não apresentam benefícios reais nem são produtos “elegantes”, pois possuem em quase todos os casos, ingredientes que não conseguimos identificar como comestíveis, ao mesmo tempo em que apresentam resíduos sensoriais desagradáveis. Ainda assim, Pollan tenta encontrar um meio termo entre o idealista e o realista e na sua sala de estar em Berkeley, ele conversa sobre onde compra atualmente seus alimentos e porque vale a pena pagar US$ 8 (R$ 14) por uma dúzia de ovos.

•••> Michael Pollan em seu jardim na sua casa em Berkeley, 2007. |zuma press

WALL STREET JOURNAL: Você acha que os residentes da costa da Califórnia compram alimentos de uma maneira diferenciada de outros lugares no mundo?
MICHAEL POLLAN: Acredito que a costa oeste dos Estados Unidos foi um dos lugares aonde se iniciou o processo de conscientização sobre a compra de alimentos de qualidade. Existe aqui um nível muito mais elevado de consciência sobre a origem dos alimentos, sobre comer sazonalmente e localmente, do que no resto do país. Temos certas vantagens em relação a outros lugares do país, pois podemos comer alimentos comprados em feiras de produtos frescos e nos mercados produtores durante 50 semanas do ano.


Como você vê o entusiasmo contribuindo para comermos melhor?

É uma questão de consciência e de paladar que tem sido constantemente educado e promovido pelos chefs locais, demonstrando que vale a pena pagar, por exemplo, US$ 3,90 (R$ 6,8) por um pêssego da variedade Frog Hollow cultivado de maneira orgânica. Eu conheço muita gente aqui disposta a pagar esse preço. Não sei se você pode encontrar um pêssego mais caro nos Estados Unidos. Minha simples regra "pagar mais, comer menos" é seguida por centenas de pessoas na Califórnia e no mundo.


Aonde você compra seus alimentos ?

Eu compro alimentos no mercado produtor perto da minha casa nas quintas feiras, no mercado de Monterey e também no centro Berkeley Bowl. Os produtos de limpeza, cereais e outras coisas para a casa, eu compro no supermercado Safeway.


Como você sugere que pessoas em Nova York ou em outros lugares com um longo inverno comam sazonalmente?
Na maior parte do país, comer sazonalmente durante o inverno é um desafio. Existem, no entanto, opções que as pessoas esquecem. Uma salada de raízes de legumes e de verduras, por exemplo, poderia ser uma alternativa refrescante para substituir a alface - além de ser muito mais nutritivo também. Mas na verdade tudo depende da intenção, de como se lida com o assunto. Não acredito em extremismos.


Você se preocupa em comprar produtos específicos em determinados lugares?

Sou bastante flexível, não sou um fanático, apesar de que algumas pessoas pensam. Eu já contei histórias sobre ser flagrado comprando cereais açucarados quando meu filho era pequeno.


Existem regras sobre compras que podem ser seguidas por pessoas interessadas em comer bem?

O mais importante é tentar sempre comprar produtos que sejam produtos da estação. É importante ignorar os alimentos até que os mesmos estejam em temporada, porque estarão muito melhores, mais gostosos e mais baratos. É maravilhoso quando encontramos tomates, morangos ou espargos maduros, lindos e com indicação de origem nos esperando no mercado.


Comer alimentos produzidos localmente de maneira sustentável precisa ser uma prioridade ou pode-se fazer isso de maneira casual?

Acredito que de maneira casual, sem dúvida. Há quem vá ao mercado produtor todas as semanas e há pessoas que vão somente algumas poucas vezes por ano. Para comer bem realmente leva-se um pouco mais de tempo, esforço e dinheiro. Mas o mesmo acontece para ter acesso a boa leitura, ou para assistir a um bom programa de televisão ou para comprar um vestido. Fazer qualquer coisa com atenção à qualidade requer esforço. Ou a experiência é recompensadora para você ou não é. Para mim esse esforço é fundamental. De certa maneira, eu entendo as pessoas que não se preocupam com qualidade e que nao se importam com esforços.


Comer bem é apenas uma indulgencia para pessoas que podem pagar mais por isso?
Se você estiver no supermercado comprando produtos orgânicos, você vai gastar mais do que se comprasse produtos convencionais. Mas comprar alimentos no mercado produtor, comparando com produtos oferecidos no supermercado e que estão em temporada, na mesma época, você na verdade vai pagar menos. As pessoas nao deviam tirar conclusões sem sentido sobre os preços de produtos de qualidade.

O que você gostaria que as pessoas, ao ler esta entrevista, entendessem sobre os alimentos que ainda não entendem?
Nós fomos condicionados por uma comunicação que estimulava a compra de alimentos baratos, artificiais, produzidos como se fossem latas de tintas ou sapatos chineses, ao mesmo tempo que éramos induzidos a ficar chocados quando uma caixa de morangos custasse US$ 3 (R$ 5,4) no ponto de venda.

Acho muito importante sabermos todos que os agricultores não estão ficando ricos. Quando
encontramos morangos sendo vendidos a US$ 1 (R$ 1,7) a caixa, somos levados a concluir que o processo de trabalho foi realizado com produtos químicos - na sua grande maioria com derivados de petróleo - para que nao fosse necessária a utilização de mão de obra no campo.

US$ 8 (R$ 14) por uma dúzia de ovos pode parecer loucura, mas quando você percebe que
pode-se preparar uma deliciosa refeição com apenas dois ovos - são somente cerca de US$ 1,50 (R$ 2,7). Não é muito se pensarmos realmente como desperdiçamos dinheiro em nossas vidas.




http://online.wsj.com/article/SB10001424052748704271804575405521469248574.html?mod=
WSJ_hps_MIDDLEFifthNews
http://michaelpollan.com/books/

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Andorra, o sabor dos pirineus



A minha curiosidade em conhecer o Principado de Andorra já vinha de longa data, desde 2007 pra dizer a verdade, quando ouvi um papo sobre a Rota do Ferro, jantando com amigos em Oslo. Então tive a oportunidade de conhecer Andorra, convidado pelo projeto de pesquisa sobre a raça bovina Bruna d’Andorra do governo local. De Madrid fui até Barcelona e de lá continuei de carro até Andorra La Vella, a pequena capital do principado. Cheguei em Andorra no início de uma tarde fria de outono nos Pirineus e logo encontrei o secretário de agricultura, Valenti Casals.




Andorra é um terroir escondido entre dois países, onde 70.000 pessoas falam principalmente os idiomas Catalão e Francês. Andorra está localizada dentro dos Pirineus, a cadeia montanhosa entre a França e a Espanha.
Durante as últimas décadas, a economia principal de Andorra tem sido o turismo. Apesar das atividades agrícolas terem perdido terreno no passado recente, existe hoje um grande movimento público-privado para o resgate das zonas cultiváveis e estímulos para a produção agropecuária sustentável na região, com o objetivo de gerar uma personalidade gastronômica de alto valor agregado, basicamente complementando um turismo existente. No passado o modelo agrícola de Andorra foi baseado na monocultura do tabaco, aparentemente sem motivos comprovados de qualidade superior das safras. Apesar do tabaco ainda ser o cultivo principal hoje em dia, a agricultura local está em plena transformação e desenvolvimento. Batatas, plantas medicinais, pecuária, frutas, laticínios e ervas frescas estão sendo estimulados pelo governo.




la ruta del hierro
a rota do ferro



Desde o século 17 até o final do século 19, Andorra foi uma importante região de extração, transformação e comercialização de ferro. A mina la Farga Rossell no vilarejo de Llorts era a mais importante da região. Foi construída em 1872 e funcionou também como atelier siderúrgico. Pelo fato de Andorra sempre ter tido um solo rico em ferro, alguns chefs do principado decidiram criar "A Rota do Ferro", um percurso gastronômico com paisagens surreais e sabores deliciosos, onde a culinária tradicional é apresentada utilizando ingredientes frescos cultivados em Andorra, com menus oferecendo uma proposta de pratos ricos em ferro. O ferro e um dos metais mais abundantes do planeta. E essencial para a maioria das formas de vida e também para a fisiologia humama. Naturalmente temos uma quantidade media de 4.5g de ferro no nosso organismo. O ferro é ótimo para um bom funcionamento do sistema respiratório, alem de ativar o grupo de vitaminas B, estimular a resistência física e ajudar a formar proteínas nos músculos.

Em Llorts, encontrei o chef Oscar Magi, dono do bistro La Neu. Quando começamos a conversar, o Oscar perguntou se eu era carioca. Depois de altas risadas e de saber que Oscar trabalhou por dois anos no Brasil, descobrimos que até temos uma amiga em comum. Oscar começou a carreira com 14 anos em um restaurante chamado Pantomaca no vilarejo de Palau de Plegamans, perto de Barcelona. Hoje com 30 anos, e depois de ter passado sete anos se dedicando a pastelaria na Dalivila em Santceloni, e ter passado por ótimas escolas, como o restaurante Calble em Igualada, trabalhando com Javier Ramon; Cambarina no parque natural de Montseny; além de ter trabalhado no Hotel Ritz de Andorra com o chef Javier Arnaldo, Oscar é um dos chefs mais prestigiados em Andorra hoje em dia. Então o menú degustação foi mais ou menos assim: croquetes de cogumelos selvagens com sálvia fresca, salada de salmão fresco, com emulsão de maracujá e espinafre, foie fresco com geléia de figos sem açúcar, creme de batatas com ovos de codorna, um leve toque de cogumelos chanterelles e cassis e carne maturada D.O. D’Andorra (uma das carnes mais incríveis que já experimentei) com cogumelos porcini fresco. Além do restaurante do Oscar, outro chef local também utiliza e promove a raça Bruna d’Andorra. Chama-se Carles Flinch, um discípulo do espanhol Pedro Subijana.



Depois de um almoço fantástico, Oscar me contou um pouco sobre a gastronomia em Andorra. Em 2004 quatro cozinheiros de Andorra decidiram criar a La Fogaina dels Pirineus. Pablo Urcelay, Alberto Coll, Pere Vilalta e Christian Zanchetta, esse último manteve por 4 anos a única estrela Michelin de Andorrra com o restaurante Aquarius. Um grupo bem bacana que se reúne frequentemente e que todos os anos entre outubro e novembro organizam eventos com cogumelos selvagens, trufas frescas e outras matérias primas locais, nas pequenas cidades de Ordino, Escaldes, la Massana e Llorts. Eles são fascinados pelo tema "educação do gosto", e são pioneiros no assunto em Andorra. No mês de outubro também acontece La Massana Fogons, dias inteiros com a apresentação e degustação de todas as variedades de cogumelos selvagens encontrados na região.


os cogumelos dos pirineus

E por falar em cogumelo, é claro que resolvi procurar alguns colhedores de cogumelos selvagens na região para conhecer as variedades locais. Expliquei ao Oscar que eu havia trabalhado em uma empresa de trufas e cogumelos selvagens por 2 anos em Bologna na Itália, e que adorava conhecer novos terroirs de coleta, novas variedades e novos sabores. Animado, o Oscar fez algumas ligações e em menos de uma hora, chegou ao restaurante o senhor Jordi Baró, um homem vestido de caçador, com casaco verde escuro, de barba e com quase 2 metros de altura. Sentou-se a mesa conosco, tomamos um copo de vinho juntos antes de começarmos a ouvir altas histórias sobre cogumelos na região. O Sr Baró aprendeu a catar cogumelos selvagens com o seu avô. Principalmente no outono, depois de chuvas nas montanhas, ele parte do centro da cidade de Llorts para buscar os cogumelos espontâneos boletus edulis ou porcini, catarellus cibarius, ou chaterelles em inglês e o incrível morchella esculenta, ou morel. Uma delícia conhecer o Sr Baró, os detalhes que ele nos contava sobre a nova geração de apaixonados por cogumelos que já começam a subir montanha acima para aprender com ele as técnicas de colheta e preservação. O Senhor Baró descrevia também que os coletores de cogumelos selvagens são os maiores protetores dos bosques e florestas. Sempre fazem questão de ser delicados na hora de pegar o cogumelo. Dia longo, precisava acordar cedo para encontrar o Valenti.



mel de montanha


Assim que encontrei Valenti na manhã seguinte para tomarmos café juntos, começamos a conversar e traçar algumas das food trips que faríamos para conhecermos a rota do mel, assim como um apicultor renomado localmente pela qualidade de seu mel. Existem vários pequenos apicultores no principado, mas a maioria produz somente o suficiente para a família e amigos mais próximos. São méis extraordinários, muito aromáticos, multi-florais, produzidos por abelhas que voam entre as montanhas dos Pirineus. Fomos recebidos pelo senhor Josep Maria Goicoechea perto de sua propriedade, nos arredores da capital Andorra La Vella. Josep Maria nos contou entusiasmado sobre o concurso de mel em Toulouse, França que ganhou, mas principalmente sobre a o novo selo de qualidade que estão criando, juntamente com o agrônomo Julio Rivas, agregando valor ao produto final, marca e sabor do mel produzido localmente, assim como protegendo uma propriedade de Andorra pelo mundo afora.

Nos últimos meses, 30 apicultores de juntaram para criar o Comitê de Apicultura APRA. O comitê foi criando com o objetivo de aumentar o atual volume de produção, certificações, processos de qualidade e distribuição.

Um almoço com muito mel e já nos despedíamos do senhor Baró, pois iríamos começar a mais sensacional das food trips que fiz em Andorra. Não via a hora de saber todos os detalhes do projeto agrícola mais ambicioso do governo de Andorra.


carn d’andorra

O projeto Ramaders d’Andorra foi criado pelo ministério de agricultura de Andorra juntamente com pequenos e médios pecuaristas em 1999, com o objetivo de criar e desenvolver o selo oficial de qualidade Carne de Qualitat Controlada d'Andorra ou simplesmente Carn d'Andorra, para produtos excelentes, com valor agregado e nativos, alem de verificar e certificar a fileira completa, desde a origem e traçabilidade do gado ate a alimentação, engorda e corte.



Valenti, um dos idealizadores e responsáveis pelo projeto, explicou que no passado os produtores rurais vendiam os novilhos com 6 meses de idade para um “engordador” de gado na Espanha por ser uma prática mais rentável. Mas o bacana da história é que o projeto começou a criar uma fileira organizada de criação e os produtores não tinham mais necessidade de vender o gado novo aos Espanhóis. Hoje em dia o projeto transformou-se em uma associação que realiza severos controles de qualidade desde o nascimento de cada bezerro, que são criados até os 11 meses de idade quando então são levados ate o único frigorífico de Andorra, que pertence ao governo e é um incentivo a mais para que o gado seja trabalhado localmente. Através também de estudos detalhados sobre raças bovinas realizado pela UPRA, um instituto de pesquisa europeu criado pela Umeå Plant Science Centre em Umeå na Suécia e pelo Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola em Versailles na França, o governo de Andorra oficializou um acordo para o mapeamento, seleção de pureza e promoção de raças e carnes de qualidade.

Estávamos a caminho da cidade de Seu de Urgell, um pequeno vilarejo localizado a mais ou menos 1000 metros do nível do mar, onde iríamos conhecer Pere Torra, um criador de gado e membro do projeto Ramaders d’Andorra. Durante o caminho, Valenti e eu conversamos sobre vários assuntos, principalmente sobre a história da carne em Andorra e sobre a raça bovina nativa chamada Bruna d’Andorra. Há 200 anos um vírus havia se espalhado na área dos Pirineus, prejudicado muito a economia local, por causa de uma doença chamada febre aftosa. Por motivo de escassez de população bovina, produtores rurais foram em busca da raça Bruna Suíça ou Bruna dos Alpes, uma raça Suíça para repovoar os Pirineus. Na Suíça a raça Bruna e utilizada tanto para leite como para carne.



Chegando a fazenda de Pere, fomos recebidos com leite fresco e sorrisos. Pere nos contava que não recebe muitas visitas. Atualmente a família Torra cultiva tabaco e cria gado, com um rebanho pequeno de no máximo 200 cabeças, sendo 50 da raça Bruna d’Andorra e o restante divididos iguais entre as raças francesas Charolais e Limousine. O objetivo de Pere é ter o seu rebanho todo de Bruna d’Andorra nos próximos 2 anos. Eles comercializam 16 cabeças por semana e a maior parte é toda vendida em Andorra.



Pere e sua mulher Mari nos disseram que a primavera é sempre a melhor estação do ano, porque as gramas frescas da montanha faziam as vacas engordar e sua carne ficar mais saborosa. Durante o verão, os rebanhos são levados ate 1500 metros de altitude. O único problema era uma curva de produção completamente irregular. Normal pelo ciclo da natureza, mas não interessante comercialmente. Hoje em dia já é possível encontrar uma produção mais homogenia durante o ano todo, graças aos projetos de desenvolvimento da raça e das regras de produção.


Durante o papo fomos andando até a parte mais alta da fazenda, onde estavam algumas vacas Bruna. Eu já sabia sobre a preferência dos franceses sobre o sabor da raça Limousine, mas com as sensações únicas durante o almoço com o Oscar Magi, precisei comparar com a Bruna d’Andorra, uma carne que é melhor consumida maturada. Conversamos sobre um tema um tanto quanto controverso em todo o mundo. Segundo Pere e Valenti, é muito importante o processo de descanso da carne, pelo fato da acidez ser muito alta caso comercializada imediatamente após o abate. Ele até sugere 7 a 8 dias de descanso. A carne se transforma em um produto mais escuro, mais maturado, mais gostoso. Uma das controvérsias mais conhecidas sobre o assunto são os supermercados e últimos açougues na Europa (e no mundo), com argumentos como data de validade mais curta, educação do consumidor e hábitos de compra e consumo de carne, em teoria fresca, sendo somente aquela mais vermelha. Vale lembrar que para que a carne obtenha todas as suas características organolepticas e sensoriais, é fundamental que o bezerro somente consuma leite da mãe ate 6 meses.




uvas de altitude


Antes de voltar a Madrid ainda havia mais um destino no nosso itinerário. Tínhamos uma reunião com o Juan Visa Tor, o único produtor de vinhos de Andorra cujo a família produz vinhos excelentes desde o século 16. Começaram mais ou menos quando o Brasil foi descoberto pelos Portugueses. Incrível! A vinícola se chama Casa Beal, Vinyes d’Alta Muntanya e fica a 1100 metros de altura. Quando chegamos o Juan estava na companhia de seus pais, o Sr Florenti e a Sra Montserrat, um casal muito bacana que conheci e que fez questão de me mostrar a parreira centenária da propriedade de aproximadamente 140 anos. A propriedade da família tem mais ou menos 30 hectares, mas somente um com uvas plantadas no momento. O resto esta sendo utilizado para o cultivo das variedades de tabaco burley e tabaco negro. A família também cria a raça Bruna d’Andorra e fazem parte do projeto Ramaders d’Andorra.



Andorra tem uma exposição ao sol quase perfeita, mas solos pouco profundos que chegam ao máximo a 30 ou 40 cm. Na verdade, durante esse experimento de Juan criou o ambiente perfeito para a identificação da melhor uva a ser cultivada biodinamicamente.



Em 1984 Juan começou uma plantação experimental plantando 10 variedades de uva, mas por um problema com a altitude e talvez pelas condições do micro terroir, a única variedade que funcionou bem foi a delicada uva Gewustrasminer. Juan contou que controla o ph do solo, deixando uma alta acidez com a intenção de produzir vinhos que são conservados naturalmente por mais tempo. Ele nos contou orgulhosos que seus vinhos podem ir fáceis ate 10 anos ou mais depois de engarrafados. Hoje em dia a Casa Beal produz somente 3 vinhos, um sendo o clássico seco monovarietal gewustrasminer, o ice wine e um novo vinho que foi lançado pela primeira vez em 2009, utilizando botrytis. Os vinhos de Juan apresentam muitas notas florais com alguma percepção de frutas frescas e rosas silvestres. Os vinhos Casa Beal são comercializados em Andorra, Israel, Bélgica. Nesses poucos e excelentes dias em Andorra, descobri também que a lavanda comum ou lavandula angustifólia é originaria dos Pirineus, e não de Provance no sul da França, como pensamos muitos de nós. Mas essa é uma outra história que ainda vou contar os detalhes.



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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura e comunicação alimentar, carioca e fundador do projeto www.ifoodorigin.com

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Consumo, cultura e sustentabilidade

“Gastar, comer, destruir, empregar, esgotar, morrer”. Essas seis palavras definem a origem da expressão “consumir”, em latim. Segundo o dicionário Houaiss, o significado também pode ser “apagar-se da memória”, “gastar até o fim; dilapidar” e “comprar em demasia e freqüência, sem necessidade”. A prática, força motriz do capitalismo, símbolo de poder e distinção, está caindo em desuso ou, pelo menos, agora é mal vista por sociedades que começam a despertar para a consciência na utilização da Terra. Esta semana foi lançado no Brasil a versão em português do relatório “Estado Mundo 2010: transformando culturas do consumismo à sustentabilidade”. O documento é uma das mais importantes publicações periódicas mundiais sobre o assunto. Em sua vigésima sexta edição, aborda, pela primeira vez, o assunto sob o olhar da cultura.


A versão brasileira faz parte da parceria entre o Instituto Akatu e o Worldwatch Institute (WWI). O arquivo está disponível para baixar na íntegra. O relatório é um balanço atualizado com números e reflexões sobre questões ambientais. Um dos dados que chama a atenção é que apenas um sexto da humanidade consome 78% de tudo o que é produzido no mundo. A conclusão é que sem uma mudança cultural que valorize a sustentabilidade em vez do consumismo, nada poderá salvar a humanidade dos riscos ambientais e de mudanças climáticas. O tom alarmista se contrapõe com citação de diversas medidas a favor da reconstrução de valores sociais e culturais.

Na última década, o consumo de bens e serviços aumentou em 28%, exigindo cada vez mais a utilização de recursos naturais. Atualmente, um europeu consome em média 43 quilos em recursos naturais diariamente – enquanto um americano consome 88 quilos, mais do que o próprio peso da maior parte da população. Há desigualdade também na maneira de consumir. Em 2006, os 65 países com maior renda foram responsáveis por 78% dos gastos com bens e serviços. Os Estados Unidos, ícone das grandes porções, abocanharam 32% do consumo global. Isso porque os norte-americanos representam apenas 5% da população. Se esse modelo vigoraresse, apesar de imperativo nas sociedades urbanas, o planeta comportaria apenas 1,4 bilhões de habitantes.

De acordo com o professor de economia da FEA/USP, Ricardo Abramovay, a compulsão pelo consumo é uma construção social, e o consumismo não guarda relação com liberdade de escolhas. Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, Abramovay, também diretor do conselho acadêmico do Akatu, cita exemplos de como empresas, governos, escolas, mídia e religiões convergem, ainda que não articuladas, para promover o desejo de compra sem limites. Hoje, o investimento em publicidade dirigida às crianças está em torno de 17 bilhões de dólares por ano, nos EUA. Quase dois terços das escolas norte-americanas recebem uma porcentagem da renda das máquinas de vender refrigerantes e guloseimas e um terço delas são financeiramente premiadas quando ultrapassam determinado nível de vendas. O faturamento global com propaganda e marketing, em 2008, foi de quase US$ 650 bilhões.


Linha do tempo da qualidade ambiental e do bem estar social

O documento traça uma interessante retrospectiva cronológica com avanços, retrocessos e tropeços entre outubro de 2008 a dezembro de 2009 que afetaram a qualidade ambiental e o bem estar social. Em Sistemas Marinhos, um estudo relata que o dióxido de carbono está aumentando a acidez dos oceanos pelo menos 10 vezes mais rapidamente do que se pensava tempos atrás, com efeitos negativos sobre diversas espécies de crustáceos. Outro levantamento mostra que pesqueiros que criam “peixe forrageiro” de pequeno a médio porte para alimentação de peixes de viveiro, porcos e aves estão afetando tanto os ecossistemas marinhos quanto a segurança alimentar humana.

A boa notícia é que a população de peixes está começando a se recompor em 5 dos 10 maiores ecossistemas marinhos sob manejo rigoroso, sugerindo que esforços para coibir a pesca predatória estão surtindo efeito. E na área de governança, os países da FAO avançam no primeiro tratado global com a finalidade de fechar portos pesqueiros a embarcações envolvidas em pesca ilegal, clandestina e não regulamentada.

A horta orgânica da Casa Branca, iniciativa da primeira-dama Michelle Obama, está registrada na linha do tempo. Outro dado revela que a venda de produtos orgânicos nos EUA alcançou 24,6 bilhões de dólares em 2008, um aumento de 17% em relação a 2007, apesar da crise econômica. Também cita que o estado norte-americano de São Francisco adotou uma “política revolucionária” para aumentar o acesso de alimentos saudáveis. Ao mesmo tempo que apoia a agricultura local, reduz emissões de gases de efeito estufa relativas a embarque de produtos. A contrapartida da América parece uma espécie de redenção para amortizar dados tão expressivos de consumimo desenfreado.

O documento está dividido em 6 capítulos, além de quadros e tabelas, totalizando 298 páginas, com artigos assinados por diversos autores. O capítulo de abertura “Em antigas e novas tradições”, relaciona os rituais religiosos com as práticas alimentares, e estimula o bom senso no uso dos recursos, como o ensaio sobre modos de produção intitulado “Da agricultura à permacultura”.

No capítulo “Nova tarefa da educação: sustentabilidade” há um artigo intitulado “Repensando a alimentação escolar: o poder do prato público. Em “O papel dos governos”, aborda propostas para construção de cidades sustentáveis e trata da reinvenção dos serviços de saúde. “Mídia: transmitindo sustentabilidade”, apresenta três tópicos a respeito do comportamento dos meios de comunicação para a disseminação da cultura sustentável. O anuário encerra com capítulo sobre os movimentos sociais, onde apresenta soluções, como as ecovilas, e destaca a atuação do movimento Slow Food. Entre os bons exemplos da associação de origem italiana estão os Mercados da Terra (encontros de produtores locais com consumidores) e criação de restaurantes e cafés, baseados na premissa em que o alimento deve ser “Bom, limpo e justo”. Também comenta o lobby dos integrantes do Slow Food em prol das causas sustentáveis. Nos Estados Unidos, onde se concentram o maior número de membros entre mais de 153 países, o relatório cita a campanha Hora do Almoço. A proposta é convocar o congresso para aperfeiçoar a Lei da Nutrição Infantil a qual estabelece os padrões das refeições escolares nos Estados Unidos. “Todo o movimento Slow Food – por suas atividades está desempenhando um importante papel parafacilitar uma mudança para culturas sustentáveis”, diz a autora Helene Gallis.

O lançamento do anuário aconteceu nessa quarta-feira (30), no Teatro Eva Herz da Livraria Cultura, em São Paulo. O evento contou com o debate “Transformando Culturas – do Consumismo à Sustentabilidade”. Participaram da discussão, mediada por Hélio Mattar (diretor-presidente do Instituto Akatu), Eduardo Athayde, diretor da WWI, Ricardo Abramovay, professor titutar da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e presidente do Conselho Acadêmico do Instituto Akatu e Lívia Barbosa, diretora de pesquisa do centro de Altos Estudos da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e membro do Conselho Acadêmico do Instituto Akatu.

Para a pesquisadora Lívia, “os vários exemplos citados, possibilitam juntar a cultura ao cotidiano das sociedades, fazendo com que o tema sustentabilidade saia das esferas dos governos e outras entidades e chegue è mesa da nossa cozinha”. O presidente do Akatu concluiu recomendando a leitura do documento que considera “primordial” para todos aqueles que têm alguma intenção de cooperar com a preservação do planeta. “O material impulsiona a todos os que têm acesso a ele a agirem em benefício da Terra”. A maneira como as culturas se relacionam com a comida, seja produzindo ou consumindo, está desencadeando uma visão mais crítica sobre a conexão existente no na tríade homem, natureza e cultura. É preciso urgentemente encontrar uma nova expressão para definir a utilização dos recursos naturais, bens e serviços. Consumir não vai combinar com as sociedades que não desejam mais gastar, apagar da memória, destruir ou esgotar.


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Juliana Dias é jornalista especializada em gastronomia, sócia da Malagueta Comunicação, empresa focada em conteúdo para o mercado gastronômico.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A Sicilia com aroma de laranja

Chegamos em Palermo durante uma madrugada fria de inverno em fevereiro. Os gastrônomos Andrew Chang de Taipei e Livio Colapinto da Itália estavam lá comigo. Na verdade estávamos juntos em Parma, no centro da Itália quando ouvimos falar de uma variedade de azeitonas chamada Tonda Iblea, que crescia somente nas montanhas ao sul da ilha da Sicilia, uma variedade de azeitona rara e somente alguns poucos produtores ainda a cultivavam. Estávamos almoçando com o mestre Toscano de azeites Sandro Bostico, da Universidade dos Estudos de Ciências Gastronômicas. Acho que nem preciso contar a curiosidade instantânea que surgiu. O legal é que em menos de uma semana estávamos dentro do carro, no aeroporto de Palermo iniciando uma food trip surreal em busca de algumas das matérias primas mais especias da terra, curtindo a Sicília e seus sabores encantados.


Logo no primeiro dia saímos cedo de Palermo para encontrar Manfredi Barbera, um carismático produtor de azeites de oliva. Nos conhecemos três anos antes em Nova York, durante alguns eventos de promoção e degustação profissional de azeites no Instituto Italiano de Culinária. O terroir da família Barbera fica no lindo vale Eleuterio, na pequena cidade de Misilmeri, localizada a 20 km do centro da capital Siciliana. A família produz e comercializa azeites, laranjas e limões desde 1888, quando se mudaram da cidade de Menfi, na província de Agrigento, para a fazenda San Lorenzo ai Colli em Misilmeri. A fazenda San Lorenzo era até então, uma fazenda de caςa e foi construída por volta de 1600. Manfredi tem 50 anos e sempre trabalhou no mundo dos azeites. Hoje em dia, a fazenda Barbera e os seus azeites estão entre os mais importantes da Sicília. Eles tem vinte hectares cultivados de variedades de azeitonas clássicas Sicilianas como a Cerasuola, Nocellara del Belice e a Biancolilla. Na minha opinião, um dos melhores azeites produzidos por Manfredi chama-se Lorenzo II, um azeite DOP com personalidade, de cultivo e transformação orgânicos, 100% feito com azeitonas da variedade Biancolilla, e com um aroma delicado lembrando amêndoas verdes e um sabor leve de alcachofras, deixando uma agradável sensação de ervas frescas na boca. Manfredi faz também um azeite pouco comum, realizado somente com azeitonas sem caroço, chamado Denocciolato. É um azeite com uma textura mais cremosa, com um sabor doce e deixando leves toques picantes no palato. Eu não acredito muito em azeites moídos sem caroço. Até porque alguns dos importantes polifenolis estão presentes no caroço, assim como algumas das notas amargas, que fazem parte da homogeneização das notas sensoriais de um bom azeite.



Durante um almoço fantástico, com queijos locais, embutidos, verduras e carnes da região de Palermo, e em especial uma ricotta fresca e quente, feita na hora que tirou o fôlego, Manfredi continuava a nos explicar sobre a sua filosofia de pequeno produtor rural, o prazer de trabalhar com a terra e com um produto tão gostoso e tradicional como o azeite, explicando-nos sobre a cultura mediterrânea “... Per fare un'olio come il mio è necessario prima scegliere gli uomini, poi i terreni e poi le olive”. (Para fazer um azeite como o meu, e necessário escolher primeiro os homens, depois o terreno, e depois as azeitonas).




Com alguns dos seus lagares Pieralisi ao fundo, Manfredi fez questão de nos contar as histórias dos pais, avós e todo o trabalho duro de gerações, construindo uma realidade forte e segura, simplesmente seguindo os passos e sugestões do campo, da natureza. Considera-se um pequeno produtor de azeites, ligado as tradições milenares de cultivo e transformação da matéria prima mais importante do Mediterrâneo. Tanto que nos levou até o lagar histórico da família. Construído antes do século XV, o moinho não está mais em uso e hoje em dia faz parte do catálogo do patrimônio cultural Italiano. É muito bem conservado e ainda está no seu local de origem, dentro de uma caverna natural a uns 20 km da sede da fazenda Barbera.

Nos despedimos de Manfredi e fomos atá a pequena cidade de Casteldaccia na costa nordeste da ilha. Fomos convidados por amigos do grupo vitivinicola Duca de Salaparuta para uma degustação na bodega boutique deles chamada Corvo. Ótimos vinhos feitos com variedades locais de uva como a Nero D’Avola, Nerello, Frappato e Inzolia. Uma pena que nao tinhamos como ficar mais tempo por la. Vale a pena voltar. Pegamos a estrada e fomos ate Trapani, na costa da Sicília.

Localizada a 120 km oeste de Palermo, a cidade de Trapani é um importante centro de pesca da Sicilia com quase 70.000 habitantes. Fomos recebidos pelo ilustre Alberto Galluffo, um produtor de azeites local da familia Bugarella, que ficou famoso nos EUA pela sua paixão promovendo os sabores e biodiversidade da Sicília. Suas fazendas de oliveiras ficam dentro do vale Trapanesi. Estudioso das variedades locais de azeitonas, Alberto preparou uma degustação com azeites que ainda não estão a venda, feitos com mono-varidades de Biancolilla e Nocellara, colhidas somente em árvores com mais de 600 anos na sua propriedade. Achei sensacional as notas sensoriais e muito interessante a complexidade principalmente do azeite de Nocellara, impressionantemente gostoso com leves notas de cacau, nozes secas e capim fresco. Andamos pelas oliveiras centenárias, curtimos ótimos papos e passamos o dia todo em Trapani. No final da tarde encontramos um amigo divertidíssimo do Alberto chamado Giuseppe. Ele é produtor de vinagres artesanais, vive como um eremita na remota ilha de Pantelleria. Contava sobre um vinagre “novo” que começou a fazer em 1982 com a uva Zibibbo, a mesma do famoso vinho local Passito e também conhecida como Moscato de Alessandria. Achei um ótimo vinagre, bastante aromático, equilibrado e com uma linda textura, apesar do Giuseppe dizer que ainda precisaria mais uns anos para alcançar o equilíbrio que ele está procurando.



Aliás, falando sobre mais uma variedade de uva, a Zibibbo de Pantelleria, acho bacana comentar também sobre a biodiversidade da olivicultura da Sicília. Existem mais de 12 variedades de azeitonas nativas; como a Biancolilla, encontrada no sudeste da ilha e talvez a mais popular e cultivadada localmente, Nocellara Messinese e Ogliarola Messinese ao norte, a Tonda Iblea no monte Iblei em Ragusa, no sul da Sicília, a azeitona Crasto, que cresce nas terras baixas das montanhas Madonie ao norte também, Cerasuola, outra azeitona popular encontrada entre as cidades de Sciacca e Paceco, a variedade La Minuta em Patti, Capo D’Orlando na província de Messina, a azeitona Castiglone que e nativa do vale vulcânico de Alcantara, perto da cidade de Taormina, Carolea cultivada na região do monte Enna, alem da azeitona Moresca, encontrada perto da cidade de Siracusa.


De Trapani começamos a viagem rumo ao sul da ilha, ao terroir do monte Iblei. Era complicado não parar em alguns lugares, como por exemplo, quando passamos pela cidade de Marsala, um dos grandes terroirs DOC (Denominação de Origem Controlada) da Itália, onde fomos conhecer altas histárias sobre vinhos fortificados, a história da herança Inglesa, tradição produtiva e matérias primas em locais. Fizemos algumas paradas estratégicas nas vinícolas Rallo, Alagna e principalmente Florio, onde tivemos a oportunidade de conhecer o museu do vinho Marsala, alem de entender melhor a cultura, os métodos vitivinicolas e os detalhes dos sabores locais. Estávamos com a Federica Mandica, uma amiga de mestrado que hoje em dia trabalha para o Consorzio DOC do Vinho Marsala. O consorzio foi criado em 1963 por alguns produtores locais, com o objetivo de proteger a marca Marsala de cópias feitas em muitos países. Durante um ótimo papo, foi uma surpresa recompensadora descobrir que o Marsala foi o primeiro vinho Italiano a receber denominação de origem controlada oficial, DOC, em 1931.



as uvas nativas de Marsala. Sicilia
Grillo, Inzolia, Cataratta

Com terras vermelhas, ricas em nutrientes, Marsala está localizada em uma área favorável ao cultivo de uvas, especialmente para uvas destinadas a vinhos de sobremesa, ou liquorósos. Essa área é denominada Fascia del Sole, ou faixa do sol em português. Eu entendi que é uma linha dourada de exposição solar prolongada, entre os paralelos 34° e 43°, o mesmo que começa no vale D'ouro em Portugal e estende-se até a costa da Turquia, passando pela Andaluzia, Sicília e Grécia. Com mais de 250 dias de sol por ano, Marsala tem um clima temperado, graças a constante brisa marinha, importante para a parreira crescer rica em açúcares e perfumes.



As três principais variedades de uvas cultivadas nos arredores da cidade de Marsala chamam-se Inzolia, Grillo e Cataratta. São uvas nativas da Sicilia, que ao longo da história foram transportadas por navios mercantes a diversas zonas do Mediterrâneo, da Europa ao norte da África. Tivemos a oportunidade de conhecer o agrônomo Fillipo Martelli, consultor do projeto local valorização das uvas locais de Marsala. Fillipo é um grande admirador da uva Grillo, a mais cultivada na região por ser a mais propícia a atingir níveis mais altos de açúcares no campo, e com isso equilibrando os teores alcoólicos dos vinhos Marsala. A uva Grillo oferece uma colheita abundante e tem ótimas qualidade organoléticas, permitindo o envelhecimento dos vinhos.

Outra uva local chama-se Cataratto. É muito cultivada também e utilizada na produção do vinho, por possuir uma alta acidez e um aroma característico de vinho quente. A última das variedades locais de uva e conhecida como Inzolia, também conhecida como uva Ansonica. Uma uva gostosa também de comer in natura. Ela e responsável pelo perfume dos vinhos Marsala e pela sensação de elegante e arredondada na boca.


Tonda Iblea, Sicilia, Itália
um dos mais espetaculares azeites do mundo

Passamos ainda por Menfi e Agrigento antes de chegar em Buccheri, um pequeno vilarejo nas colinas do monte Iblei, entre Ragusa e Siracusa. A diversidade da composição do solo nessa área do mundo é impresionante. Com micro-terroirs de origem calcária, vulcânica e terrenos arenosos, temperaturas mediterrâneas e condições climáticas favoráveis ao cultivo de oliveiras, o território que um dia pertenceu ao rei Hyblon, hoje é a terra natal da azeitona Tonda Iblea. O monte Iblei abrange três províncias Sicilianas, da Catania, Ragusa e Siracusa, no coração do mar Mediterrâneo, a antiga porta de entrada das oliveiras na Europa.

Chegando em Buccheri encontramos Tino Cavarra, um produtor de azeites orgânicos, apaixonado por Iblei e sua matéria prima. Tino nos contou como funcionava a Denominação de Origem Monti Iblei, as regras de cultivo e produção, assim como as zonas determinadas pela DOP. Os micro terroir de Iblei são Vale Tellaro, Frigintini, Vale de Irminio, Vale d’Anapo, Calantino, e Trigona Pancali, assim como as duas zonas consideradas grand cru, uma chama-se Monte Lauro e a outra Gulfi.


Durante uma ótima caminhada por sua fazenda, no coração do grand cru de Monte Lauro, Tino continuava a declarar seu amor pela Tonda Iblea, falando sobre os espetaculares e curtos troncos e suas folhas escuras e o fato de crescerem em solos pouco profundos. É a única variedade de azeitona Italiana que cresce em altitude superior a 800 metros. Tino tem orgulho em dizer que em menos de 24 horas depois da colheita as azeitonas são transformadas em azeite, o que é fundamental para obter um azeite com acidez baixa. A colheita é realizada quando as azeitonas ainda estão verdes, antes de ficarem negras e mais maduras. A variedade Tonda Iblea é particularmente rica em antioxidantes, uma característica importante para a conservação, assim como benéfica para a saúde humana. Hoje em dia sabemos que o óleo, ou azeite de oliva possui várias substâncias benéficas a saúde. Entre elas, a prevenção de oxidações biológicas, porque é um produto rico em polifenóis, que reduzem a formação de radicais livres. Os radicais livres são responsáveis pelo envelhecimento e doenças degenerativas, como o câncer.

Nos despedimos de Tino e continuamos nossa food trip pelo Iblei. Queríamos conhecer a outra zona “grand cru” chamada Gulfi. E saindo de Buccheri, paramos em um bar nas pequenas estradas Sicilianas, para pedir informações. Então, meio que sem querer, encontramos Angelo Lucifora da Azienda Agrícola Tumino Emanuela. Angelo é um artesão do sabor. A família Lucifora esta em Iblei desde o século XV, desde sempre na pequena cidade de Modica, Angelo mora com a mulher Emanuela e seus dois filhos. Eles tem quatro hectares de plantados com a Tonda Iblea. Faz um azeite com sabores inenarrável. Poucas vezes na vida me senti assim depois de provar alguma coisa. O aroma, o sabor, as sensações, a simplicidade de um artesão e toda a sua realidade no campo, no cultivo, na produção. Foi incrível ter conhecido o Angelo.


O azeite feito com 100% Tonda Iblea tem uma cor verde-ouro, com uma doçura única a essa variedade. É um dos únicos azeites do mundo que nos oferece notas sensorias alem dos clássicos sabores de alcachofras e ervas, nos proporcionando aromas de tomates verdes. Com notas de frutado meio-intenso e um amargor agradável, é um azeite muito equilibrado e um dos meus favoritos. Existem também as azeitonas da variedade Marmurigna em Iblei, mas acho que vale a pena deixar o sabor e as sensações apenas para Tonda Iblea... e todos seus encantos.

Com a sensação de missão cumprida e satisfeitos com todas as experiências já vividas na Sicilia, continuamos a nossa viagem para a cidade de Catania, onde iríamos encontrar o líder do Slow Food local e chef do restaurante Metro no centro da cidade. Passamos dois dias com o Aldo Bacciulli conhecendo os mercados dos produtores da Catania, muito bonitos e organizados por sinal, além de termos saboreado os clássicos arancini di riso, os bolinhos de arroz. Eles tem esse nome porque se parecem a pequenas laranjas, ou arancio em Italiano. Uma herança árabe que era consumida antigamente somente com açafrão e carnes menos nobres, prático de transportar, teve a sua origem reconstruída na cidade da Catania, ganhando os ingredientes locais e utilizando cremosos risottos como base.



Um dos lugares mais clássicos da Itália para degustar diversos tipos de arancini e a casa Savia, no centro da cidade, em frente a praça central da Catania. Aberta desde 1897, Aldo nos contou que as receitas são as mesmas desde o inicio quando Elisabetta Savia ainda coordenava as cozinheiras no preparo de arancini, cassavas, canoli e outras delicias Sicilianas. É impossível para mim pensar na ilha Italiana da Sicilia, sem fazer uma referência direta aos papos deliciosos, durante toda uma vida, com a Elena Gabriele Infant me contando sobre a sua infância na Itália, passeando pelos campos Sicilianos, explicando sorrindo “… la Sicilia c’e il profumo d’arancio” (A Sicilia tem o perfume de laranja).


Links para continuar a viagem:

Palermo - Misilmeri
Palermo - Casteldaccia
Palermo - Trapani
Trapani – Marsala
Fontanasalsa – Marsala
Marsala – Sambucca di Sicilia
Marsala – Agrigento
Agrigento – Buccheri
Buccheri – Modica

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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura e comunicação alimentar, carioca e fundador do projeto www.ifoodorigin.com

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Taiwan, a ilha do chá

Por mais de quatro anos, ouvi incríveis histórias sobre a cultura, a gastronomia e os hábitos alimentares da pequena ilha de Taiwan. Até que em meados de maio de 2009 resolvi conhecer o país, convidado pelo amigo e gastrônomo profissional Andrew Che Hao Chang.

Taiwan é uma pequena ilha localizada perto da costa de Hong Kong. Apesar da ilha ter se chamado Formosa durante muito tempo, por motivo da colonização portuguesa por volta de 1544, Taiwan é um país independente e apenas mantém alguns vínculos econômicos e culturais com a China.



Tive a oportunidade de conhecer e aprender aspectos gastronômicos dessa cultura milenar. Chegamos à cidade de Taipei em uma noite estrelada e fomos direto conhecer o mercado noturno de Ningxia. Esse é o mercado mais importante de “street food” de Taipei, e um dos mais importantes da Ásia. Andando pelo mercado, pude perceber a riqueza de ingredientes e sabores. Andrew me levou nos melhores vendedores do mercado, onde experimentamos alguns clássicos da culinária local; as deliciosas omeletes com ostra, arroz com porco assado e chegamos a experimentar também o doce Mochi, além dos bolinhos crocantes taro, conhecido também como torta de feijão vermelho. O mercado noturno de Ningxia tem 60 anos de história. No início era um mercado dedicado a pequenos produtores agrícolas dos arredores de Taipei e vendedores de comida. Hoje em dia, vendedores de tecidos e roupas também fazem parte da cooperativa que administra o mercado, por causa dos surgimentos de grandes lojas de departamentos na capital do país.


Durante a visita, encontramos Lai Bing-xun, o responsável da cooperativa que administra o mercado. Bing-xun nos contou que o mercado tem mais de 200 barracas e sua grande maioria ainda vende comida. O mercado se estende por quase 300 metros na Rua Ningxia. Achei incríveis os hábitos de vendedores e compradores pela simplicidade de alguns, pelas tradições de preparo dos ingredientes e pelo sorriso fácil de quem degustava alguns dos “snacks”.



No dia seguinte pela manhã, fui surpreendido por uma notícia do Andrew. Tínhamos um café da manhã marcado com a celebridade gastronômica de Taiwan. De volta a Taipei depois de seis anos entre a Europa e a China, A-Jiao Zhuano é a chef e dona do famoso restaurante Cest’bon, no bairro de Zhong Shang. Um papo incrível sobre matéria prima local, sustentabilidade culinária, azeites, mas principalmente sobre a cultura do chá. A-Jiao me explicou que por causa da excelência do cultivo e preparo do chá artesanal, Taiwan foi por muito tempo conhecida como “Eastern Beauty”, nome também de um chá bem famoso produzido na ilha. A-Jiao é uma tea master que passou a vida toda pesquisando os melhores terroirs de chá em Taiwan e no mundo. Durante a conversa, percebi que precisaria ficar por lá no mínimo uns três anos para conhecer tudo que gostaria, mas como tínhamos pouco menos de uma semana, decidimos que iríamos priorizar algumas aventuras de geografia gastronômica dessa vez, focando principalmente na cultura do chá.


a viagem

Começamos então a criar e decidir um itinerário. A-Jiao explicou que iríamos visitar um amigo seu, chamado Gao Dingshih. Saímos de Taipei numa quarta-feira ensolarada, rumo à área de Shihding, sul do país, perto das montanhas de Ping lin. No caminho para conhecer a plantação de chá do Sr. Dingshih, não tínhamos como não parar e visitar o famoso Museu do Chá. O Museu do Chá da cidade foi aberto em Janeiro de 1997 e é o maior museu de chá do mundo. Fica localizado no centro do pequeno vilarejo de Ping lin, no coração das montanhas de Taiwan. O museu tem exposições permanentes que incluem aspectos da produção, transformação e tipos de chá, objetos antigos relacionados à produção e ao ritual de servir-lo, assim como aspectos culturais da arte do chá em Taiwan. Já dentro do museu, A-Jiao nos contou um pouco sobre a história do chá, sua produção e vários aspectos muito curiosos sobre como o chá faz parte marcante da cultura e história do Taiwan e da China.



A China e a Índia são os locais de origem do chá, como conhecemos os arbustos altos e verdes. A planta do chá pertence à família das Camélias. Hoje em dia sabemos que existem mais ou menos 380 espécies diferentes de Camélias em todo o mundo. A-Jiao contou também que na sua busca pelos melhores terroirs do mundo, encontrou plantas ainda selvagens perto da montanha de Mai-Yuan a 1400 metros do nível do mar.


os ingredientes e as variedades do chá
Descobri que entre os ingredientes principais do chá encontramos água, proteínas, os aminoácidos, carboidratos, substâncias minerais, vitaminas, entre outras. O chá é um excelente antioxidante natural. Além de prevenir a variação das células, contribui para a redução do colesterol e prevenção da pressão alta, alem de controlar o açúcar no sangue.



Apesar de cada dinastia chinesa ter tido sua própria classificação, hoje em dia não só a China mas Taiwan também têm seus próprios standards de qualidade de chá. A China hoje em dia possui uma classificação onde distingue seis sistemas ou tipos de chás; chá verde que tem uma história gloriosa entre todos os chás e não é fermentado; Chá preto que é um produto fermentado; Chá fresco ou Oolong, que é semi-fermentado; Chá branco que é ligeiramente fermentado e é o meu favorito; Chá amarelo levemente fermentado e sua produção é muito parecida com o chá verde; E finalmente o chá marrom ou Pu’Er que além de fermentado, muitas vezes é envelhecido. Espero ter a oportunidade de escrever sobre o chá Pu’Er. É um chá sensacional, intrigante e com uma história surreal relacionada às viagens dos produtores de chá, desde a província de Yunan no sul da China, atravessando o Himalaia até o maior mercado de chá do mundo na cidade de Lhasa no Tibet.

Em Taiwan as variedades cultivadas são sete. Oolong, green heart; Oolong com folhas inteiras; Da-Mou, green heart; chá rústico, red heart; Asamour Da-Mou, red heart; e Oolong amarelo. Em 1969, o Departamento de Desenvolvimento de Chá do governo de Taiwan desenvolveu duas novas variedades; uma chamada Jin sin ou chá n° 12 e o chá Jade n° 13. A história, as origens, as variedades, as classificações e os sabores dos chás são tantos que A-Jiao achou melhor deixar alguns outros temas para uma próxima vez e focar naquele momento em seguir viagem para chegarmos ao terroir de chá de Gao.

Continuamos montanha acima rumo às colinas verdes de Shen Keng, um lugar espetacular a 600 metros do nível do mar, onde a natureza ainda parece intocada. Eu não fazia idéia da riqueza da história da família do Sr. Gao. Há 1000 anos atrás, a família que já cultivava camélias e produzia chá nas encostas verdes do município de Anxi, na província de Fujian, na China, se mudou para as colinas de Shen Keng na ilha de Taiwan. Encontramos Gao na estrada Hengping perto da sua plantação. Gao tem aproximadamente 40 anos, é simpático, mas muito tímido. Fomos direto a primeira parte da plantação, conhecer as plantas mais jovens que ficam na beira de uma estrada. São plantas menores de uma variedade de camélia que ele trouxe da China há dez anos atrás. Alias, A-Jiao visita as plantações de chá do Gao há 20 anos. Em 1990 ainda em Xangai, ela experimentou pela primeira vez o Oolong Gu-Dian que ele produz e se encantou com as notas sensoriais, apaixonando-se pelo sabor. As colinas de Shen Keng são banhadas pela nascente do rio Ji Long. A umidade alta é essencial para a saúde da Camélia e qualidade do chá. O solo onde estão as camélias de Gao é composto basicamente de limestone e argila amarela. Eu não conseguiria classificar a agricultura de Gao como orgânica ou biodinâmica.



Ele nos mostrou com muito orgulho a riqueza natural do solo, arrancando com as próprias mãos uma planta alta de capim para que pudéssemos ver a cor da terra. Incrível! Gao não usa sapatos. Quando perguntei o porquê, ele simplesmente deu um sorriso e disse que não existe melhor maneira de estar em contato com o terroir e sentir a forca da terra, e que aprendeu isso ainda criança com o seu avô.

A propriedade de Gao tem 1 hectare, ou 10.000 metros quadrados no total onde ele produz somente 100 quilos de chá por ano. Com uma das heranças familiares mais ricas da China, Gao se tornou um expert em Oolong. Atualmente a sua produção é totalmente vendida anos antes da própria colheita. Para termos uma idéia, 600 gramas do seu chá mais apreciado, o Oolong Gu-Dian, são vendidas por US$ 300 em algumas capitais do mundo.



Durante esse dia espetacular com A-Jiao, Gao e Andrew, pude conhecer algumas características importantes sobre a colheita e produção de chá. Assim como o vinho e o azeite, os sabores e aromas do chá mudam de acordo com as condições climáticas a cada ano. Dentre os chás produzidos por esse autêntico artesão do sabor, destacam-se o Oolong Wang Shiu, uma homenagem aos pais, e o Oolong Gu-Dian, um dos melhores chás do mundo. Gao nos convidou para uma degustação e fomos conhecer o seu atelier, uma pequena casa próxima a sua onde mora com a mulher e seus dois filhos, onde ele produz chá. Algumas das ferramentas utilizadas para o cultivo e transformação do chá são seculares, como a grande panela de aço que pertencia ao pai do seu avo. Gao ainda hoje utiliza a mesma panela de aço para acelerar a fermentação, oxidando gentilmente as pontas das folhas da camélia para criar o Gu-Dian Oolong, sempre com fogo baixo. Ele explicou que esse processo é necessário para quebrar as enzimas e potencializar os sabores presentes nas folhas da camélia. Achei bacana saber que um de seus segredos é colocar as folhas para secar ao sol por dois dias. Segundo ele, esse processo contribui para que o chá fique com um leve gosto de manjericão e um aroma redondo, parecido com mel.


a água e o chá

No inicio da degustação, Gao comentava sobre a importância de utilizar uma água excelente para fazer o chá. Estávamos prestes a experimentar uma água rica em minerais e macia, vindo da nascente do rio Ji Long. Uma delicia. Cheguei a lembrar da maravilhosa água do Monte Latari perto de Batipaglia no sul da Itália, onde as búfalas bebem uma das melhores águas da terra e os queijos são sensacionais. Não só a importância da água é fundamental para um bom chá, mas também a troca das águas na hora de servir e a intensidade dos aromas e sabores de acordo com cada seção de água. Aprendi alguns dos rituais de servir e beber chá. Em geral, a primeira água é utilizada somente para abrir as folhas e iniciar o processo de infusão. Gao não bebe chá da primeira água. Já na segunda, os aromas e sabores começam a aparecer de forma marcante, principalmente as notas florais. De acordo com o artesão do sabor, com os seus chás poderíamos ir tranquilamente até dez ou mais águas sem trocar o chá. Outro ponto importante é a temperatura da água. Ao contrário do que muitos acreditam, Gao insistiu que a melhor maneira de fazer chá e sempre com água a 50°C, e não a 80°C. Encontrei varias notas sensoriais durante a degustação que me surpreenderam pela variedade e nuances. Mas deixei o melhor para o final.




o tesouro
Depois de horas de degustação e quando pensava que já estaríamos voltando para Taipei, Gao contou a A-Jiao que estava indo buscar dois de seus maiores tesouros. Então vimos que ele procurava dentro de um buraco na parede, que ele chama de cofre, alguns retalhos de pano. Ele sentou-se novamente e abriu os panos velhos, quase trapos, com uma espécie de folha seca dentro. Quando perguntei o que havia de tão especial nesses chás, Gao não conteve as lágrimas e contou feliz da vida que eram dois Oolongs Gu-Dian. Até ai tudo bem, eu estava feliz por continuar a degustação, mas não tinha entendido as lágrimas. Quando ele finalmente começou a contar como foram colhidas e por quem, me juntei a ele na emoção. O primeiro era um Oolong Gu-Dian que foi colhido e produzido por seu pai há quarenta anos atrás, um chá gostoso, com notas de terra molhada e um leve sabor de couro no retro gosto. O segundo, também um Oolong Gu-Dian, mas produzido por seu avo há mais de setenta anos, somente com folhas de plantas camélias com mais de cem anos de idade. Era um chá com aromas fortes, intensos, mas interessantíssimos, levando a minha imaginação a encontrar notas aveludadas de cogumelos selvagens e um leve frescor de menta no final.


“Preparar ou fazer chá é muito mais do que simplesmente preparar uma bebida. É uma emoção e a pura expressão da hospitalidade, fazendo amigos e sendo honesto”. Gao Dingshin

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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura e comunicação alimentar, carioca e fundador do projeto www.ifoodorigin.com

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