35° 40′ N 139° 46′ E
O Japão é uma delicia, muito além do que se possa imaginar. Durante os últimos anos estive algumas vezes nas cidades de Tóquio, Kobe, Shodoshima e Osaka. Na primeira vez que visitei o país, me encantei por uma cultura poética, onde o contemporâneo e o tradicional estão lado a lado todos os dias, oferecendo ao olho nu uma percepção detalhada do design de sabores sensacionais.
Acordei as duas da madrugada para encontrar os amigos Eriko Shiba e Amano Sakamoto, que já me aguardavam em Akasaka. Era uma manhã fria de marҫo e ainda faltavam algumas horas até o sol nascer. Fomos de carro do bairro alto de Akasaka até o centro de Tóquio, mais especificamente na área chamada Tsukiji, a oito quarteirões do bairro central de Ginza, onde desde o século XVI existe o maior mercado de peixes do mundo em uma área de vinte e dois hectares, as márgens do rio Sumida. A primeira vez que visitei o famoso mercado Tsukiji tive a alegria de estar acompanhado por dois craques da alimentação local, profissionais de gastrônomia do grupo Mitsukoshi, Eriko e Amano. Eu estava em Tóquio realizando uma pesquisa sobre o mercado gourmet, luxo sustentável e food design e aproveitei uma manhã sem reuniões para mais uma food trip, dessa vez uma fantástica experiência gastronômica sobre tradições e hábitos relacionados a pesca e ao consumo de peixes no Japão.
O mercado de Tsukiji comercializa algo em torno de duas mil toneladas de peixes e frutos do mar por dia. Para termos uma idéia de grandeza, o segundo maior mercado de peixes do mundo, o Fulton Fish Market, dentro da ilha de Manhattan na cidade de Nova York comercializa cento e quinze toneladas por dia.
Chegamos nos arredores do Tsukiji antes das três da manhã, logo após alguns shots encorpados de café para agüentar o frio e o sono da madrugada japonesa. O senhor Kedo já nos aguardava perto de uma das entradas laterais do mercado. O pai do Amano é amigo de infância do senhor Kedo, um dos antigos diretores do mercado Tsukiji, que gentilmente se dispôs a passar algumas horas conosco conversando sobre o mercado. Eu estava ansioso para poder entrar nos galpões onde acontecem os grandes leilões de atum, onde os preços dos maiores peixes podem chegar até cento e setenta mil dólares. Muito simpático e sorridente, o pequenino senhor Kedo, no auge dos seus setenta anos, comentava que estávamos prestes a descobrir um novo mundo sensorial, onde a beleza artística entre o oceano e a mesa nos surpreenderia através de seus mais importantes autores, os pescadores e artesãos que trabalham todos os dias no Tsukiji.
Uma das histórias sobre a origem do mercado, de acordo com o senhor Kedo, começa no século dezesseis durante a dinastia do shogun Tokugawa, que após construir o castelo e a cidade de Edo, hoje em dia chamada de Tóquio, convidou pescadores da região de Tsukudajima em Osaka, para fornecer peixes e frutos do mar ao castelo de Edo. Além do fornecimento semanal ao castelo, os restos eram inicialmente vendidos perto da ponte de Nihonbashi. Depois disso e para suprir as demandas de uma população crescente, a zona de Nihonbashi ganhara seu primeiro mercado de produtos frescos. Foi também durante o período de Tokugawa que outros mercados, como os de verduras de Kanda e Senju, foram criados. Em 1923 um terremoto chamado Kanto destruiu completamente os locais onde originariamente os mercados estavam desde sempre. De maneira inovadora para a época, a prefeitura de Tóquio reconstruiu os mercados de Tsukiji e Kanda de maneira a proporcionar um acesso mais fácil e inteligente de ingredientes frescos e saudáveis a população de Tóquio.
Chegando a hora de começar o percurso pelo Tsukiji, adentramos no mercado e logo percebemos uma tumultuada atmosfera, onde estávamos andando entre engradados plásticos, caminhões parados e driblando pequenas carrocinhas motorizadas e velozes que percorriam as estreitas ruelas, levando consigo atuns de mais de quatrocentos quilos até os galpões onde acontecem os leilões, onde o atum é selecionado de acordo com a qualidade e origem. São quase sessenta mil pessoas trabalhando todos os dias no mercado. Quando estávamos chegando ao primeiro galpão, encontramos o senhor Shiro Kamashita, um amigo do senhor Kedo, que representa a terceira geração da sua família que trabalha no Tsukiji.
Chegando a hora de começar o percurso pelo Tsukiji, adentramos no mercado e logo percebemos uma tumultuada atmosfera, onde estávamos andando entre engradados plásticos, caminhões parados e driblando pequenas carrocinhas motorizadas e velozes que percorriam as estreitas ruelas, levando consigo atuns de mais de quatrocentos quilos até os galpões onde acontecem os leilões, onde o atum é selecionado de acordo com a qualidade e origem. São quase sessenta mil pessoas trabalhando todos os dias no mercado. Quando estávamos chegando ao primeiro galpão, encontramos o senhor Shiro Kamashita, um amigo do senhor Kedo, que representa a terceira geração da sua família que trabalha no Tsukiji.
O senhor Kamashita, assim como seus antepassados, trabalha avaliando a qualidade e o frescor do atum, checando todos os peixes que são leiloados, da cauda até as guelras, e de vez em quando experimentando um pedaço de carne fresca também. Os leilões de atum no Tskuji acontecem em vários galpões separados, geralmente por padrões de tamanhos do atum, se os peixes são frescos ou congelados, nacionais ou importados. Todo o atum é sempre exposto no chão, lado a lado, com especificações técnicas escritas em pequenos tags colocados no peixe para a fácil identificação do comprador. Alguns pescadores também cortam o rabo do atum para que os compradores possam ver a qualidade do peixe pela coloração da gordura na carne.
Cada leilão começa quando o leiloeiro toca um sino de metal e quase que instantaneamente acaba segundos depois. No começo foi difícil para eu acompanhar os detalhes. O mais incrível do espetáculo dos leilões de atum são os sinais de oferta a um lote específico. Somente os leiloeiros são quem gritam rapidamente os preços iniciais, gingando o corpo como se fosse uma dança, prestando atenção nos lances recebidos e em seus assistentes para ter certeza que está tudo anotado quando o lote for encerrado. São eles quem decide a ordem do leilão de acordo com a qualidade dos peixes, sendo os melhores com mais equilíbrio entre a carne e a gordura, com aparência marmorizada como a carne da raça bovina japonesa Wagyu, um formato assimétrico e arredondado do dorso, sem sinais de machucados durante o combate no momento da pesca.
Os pescadores, todos de galochas e a maioria com suspensórios, ficam por perto para assegurarse da vendas. Os compradores por sua vez, somente fazem as ofertas com sinais manuais, em silêncio. Aliás esses sinais são impossíveis de serem compreendidos. São como se fossem códigos antigos, onde os compradores encostam as pontas dos dedos, umas nas outras em seqüência velozes. Surreal!
Existem oito espécies de atum no mundo sendo quatro espécies as principais; Todas as espécies são migratórias. O Bonito do norte ou atum branco (em inglês northern bluefin tuna) é um dos mais apreciados e é encontrado nos oceanos Atlântico e Mediterrâneo, o bonito do sul encontrado na parte sul de todos os oceanos, o atum-olho-grande (em inglês bigeye tuna) e a albacora–de-lage ou atum amarelo (em inglês yellowfin tuna). A carne mais cara do atum, e um luxo comestível em toda a Ásia, chama-se otoro. É a carne encontrada no entorno da barriga do atum, embaixo da barbatana peitoral.
Andando pelos galpões percebi que os peixes tinham origens distintas, como Austrália além do Japão, mas jamais iria imaginar que encontraria um atum mexicano. Conversando com o senhor Kamashita, descobri que o atum importado sempre tem um pedaço maior de carne vermelha exposta do que o atum japonês. Isso acontece porque o peixe importado esta fora d água a mais tempo e também porque viajou mais ate chegar em Tsukiji para o leilão.
E por falar em viajar para o leilão, conheci durante essa manhã um pescador americano do estado de Massachussets chamado Jim Edward. O conheci ao mesmo tempo em que o senhor Kedo me apresentou ao senhor Toshiharu Ochi, um dos diretores atuais do Tsukiji. Nos sentamos todos na saída do galpão para esperar por Eriko e tomarmos um copo de chá puer. Jim nos contava que visita o mercado frequentemente, até porque é um dos fornecedores de bonito do Tsukiji. Na costa de Massachussets, a uma distancia de até cento e sessenta quilômetros do litoral, barcos americanos trabalham com a pesca sustentável de linha, ao invés da pesca predatória com redes de arrastão.
Segundo Jim, a logística do atum de alto valor agregado acontece como um relógio suíço. No momento que o atum é pescado, o barco envia uma mensagem de radio até os seus traders em Boston. No momento em que o barco ancora, um caminhão já esta a sua espera para receber o atum parcialmente congelado, cuidando da temperatura a cada minuto, pois a carne perde seu valor se for cristalizada. O atum é então levado até o aeroporto internacional de Boston onde pega o primeiro vôo até o Japão, chegando no Tsukiji em apenas 48 horas depois de ser retirado da água. O curioso é que até o verão de 1972 o atum chamado de bluefin não tinha valor comercial para pescadores americanos. Era um produto utilizado para ração de gatos em lata. Quem diria!
E por falar em viajar para o leilão, conheci durante essa manhã um pescador americano do estado de Massachussets chamado Jim Edward. O conheci ao mesmo tempo em que o senhor Kedo me apresentou ao senhor Toshiharu Ochi, um dos diretores atuais do Tsukiji. Nos sentamos todos na saída do galpão para esperar por Eriko e tomarmos um copo de chá puer. Jim nos contava que visita o mercado frequentemente, até porque é um dos fornecedores de bonito do Tsukiji. Na costa de Massachussets, a uma distancia de até cento e sessenta quilômetros do litoral, barcos americanos trabalham com a pesca sustentável de linha, ao invés da pesca predatória com redes de arrastão.
Segundo Jim, a logística do atum de alto valor agregado acontece como um relógio suíço. No momento que o atum é pescado, o barco envia uma mensagem de radio até os seus traders em Boston. No momento em que o barco ancora, um caminhão já esta a sua espera para receber o atum parcialmente congelado, cuidando da temperatura a cada minuto, pois a carne perde seu valor se for cristalizada. O atum é então levado até o aeroporto internacional de Boston onde pega o primeiro vôo até o Japão, chegando no Tsukiji em apenas 48 horas depois de ser retirado da água. O curioso é que até o verão de 1972 o atum chamado de bluefin não tinha valor comercial para pescadores americanos. Era um produto utilizado para ração de gatos em lata. Quem diria!
Desde 1970 pescadores estrangeiros perceberam a oportunidade de explorar o mercado japonês, por se tratar de uma demanda continua por atum de qualidade. No ano de 2003 o Japão importou mais de doze bilhões de dólares em atum, muito mais do que qualquer outro país, de acordo com a FAO, Food and Agriculture Organization das Naçoes Unidas. O Japão consome um terço de todo o atum do mundo, cuja a produção estima-se ser de seiscentas e trinta mil toneladas. São quase seis quilos de atum por pessoa por ano. A maioria do atum e de alta qualidade, atum para sashimi, não o tipo de atum vendido em lata como no resto do mundo. Até antigamente, quase todo o atum vendido na Japão passava pelo Tsukiji, que em 1930 começaram os leilões diários de atum, camarão e ouriço. A variedade de opções dentro do Tsukiji é entusiasmante. Peixes espada frescos e congelados do Iran e Cidade do Cabo, caranguejo gigante, lulas, todos os tipos e origens possíveis de camarões como o camarão kuruma da Ásia, o camarão do Alaska, o camarão doce japonês, o camarão americano de Maine, o peixe venenoso e muito gostoso fugu nadando em tanques isolados, robalos, linguados, polvos, sépias, cavalos marinho, enguias de todos os tamanhos, vieiras, ostras da baía de Tsunenori e tantas outras coisas mais.
E por falar nisso, também estivemos em um leilão de ouriços frescos em um dos corredores do Tsukiji, logo após sairmos dos galpões de atum. Os ouriços frescos são uma delicia, com um gosto de mar, uma textura macia e suave. Os pequenos leilões de ouriços começam por volta das cinco da manha, após o do atum. Dentre as origens que encontrei estavam os famosos ouriços de Hokkaido ao lado de ouriços frescos da Califórnia. Os preços variam muito em relação a origem, por exemplo, cem gramas de ouriço japonês de Hokkaido custa aproximadamente sessenta dólares, enquanto os americanos custam algo em torno de oito a treze dólares pela mesma quantidade.
Já se aproximavam das oito horas da manha e estávamos com fome, especialmente depois de assistir um baile de ingredientes frescos. Ao perguntar ao senhor Kedo sobre algum lugar onde poderíamos comer, ele sorriu e continuou caminhando pelas ruas estreitas do mercado até chegarmos a um beco sem saída. Eu pensei que estávamos ainda por conhecer alguma coisa bacana do mercado, mas para a minha surpresa, havíamos acabado de chegar num pequeno restaurante, sem muitas placas e sem mesas. Sentamo-nos no bar em frente a dois cozinheiros japoneses que preparavam peҫas ornamentais, utilizando somente arroz servido sob sardinhas, enguias e mackerel, atum, ovas de atum, lulas, otoro, fígado de bacalhau, intestinos cru de kawahagi com ervas frescas, e também uma novidade, o chutoro, uma carne mais marmorizada ainda do que otoro, com mais teor de gordura que simplesmente desmancha na boca. Poderíamos dizer que é praticamente um foie dos mares. Dentro do Tsukiji existem alguns poucos restaurantes que abrem ainda de madrugada e servem deliciosos cafés da manha ao melhor estilo japonês.
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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura & comunicação alimentar e sócio-fundador do estúdio boutique de pesquisa e inovação no agronegócio e gastronomia estilogourmand ltda, com escritórios no Rio de Janeiro e Madrid