quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Agricultura Biodinâmica -
Tradição, inovação & sabores sensacionais

Em 1910 a malha ferroviária da Alemanha já se estendia por todo o país e isso facilitou o acesso de pessoas de uma determinada região, a produtos de outras. Tal fato passou a influenciar também a agricultura e assim, fábricas de Hamburgo compravam cereais de outras cidades, produziam rações para animais e vendiam para fazendeiros de locais distantes. O que para nós parece óbvio, simples, era uma novidade na época e passou a influenciar os costumes e mudar os métodos de produção. Isso por que com tal facilidade os pecuaristas puderam aumentar enormemente o número de animais criados e, por outro lado, quem produzia a base da ração, tinha a chance de aumentar a produção de forma equivalente, deixando de lado a diversidade. Essas mudanças começaram a trazer problemas para os produtores rurais, como por exemplo a percepção dos agricultores de que seus produtos já não eram mais tão gostosos quanto na sua infância. Por isso um grupo deles, preocupados com a situação, foi procurar Rudolf Steiner atrás de uma alternativa.


Rudolf Josef Lorenz Steiner nasceu em território Austríaco (hoje a região pertence à Croácia). Por seu pai ser funcionário de empresa ferroviária, morou em vários endereços. Estudou matemática e ciências naturais e aos 23 anos, em 1884, se tornou editor das Publicações de Ciências Naturais de Goethe, com material de diversos autores, tais como Schiller. Fez parte da Sociedade Teosófica com quem rompeu mais tarde e fundou então a Antroposofia. Desde o começo de sua carreira se tornara um exímio palestrante e até o fim de sua vida chegou a fazer aproximadamente seis mil palestras. Quando perguntado sobre algum tema específico, Steiner muitas vezes  elaborava uma sequência de palestras e transmitia através destas, a base para elaboração contínua dos temas nas mais diversas áreas como pedagogia (Waldorf), arquitetura, medicina, agricultura, arte e outras mais.

Ao ser questionado sobre os novos problemas surgidos na agricultura, Steiner fez em seu último ano de vida, 1924, numa fazenda localizada na cidade de Koberwitz, atualmente em território Polonês, oito palestras que dariam início à agricultura biológico-dinâmica, ou simplesmente biodinâmica. Segundo o Demeter – regulamentador mundial da agricultura biodinâmica existente desde 1928  – em 1931 já existiam mil propriedades produzindo desta forma. Em 1932 já haviam fazendas sendo convertidas para esse sistema na Suiça, Suécia, Holanda, Inglaterra, Áustria e Noruega. Em 1939 chegava oficialmente a Nova Zelandia.

Em 1941 todas as organizações Demeter foram proibidas na Alemanha pelo sistema nazista, mas algumas fazendas, como Marienhoe, próxima a Berlim (www.hofmarienhoehe.de) continuaram seu trabalho disfarçadamente. No país de sua origem é comum encontrar fazendas que trabalham a agricultura biodinâmica há mais de 50 anos com sucesso, como Hof Dannwisch www.dannwisch.de, Hof Wörme n°.2 www.hofwoerme.de, Bauckhof www.bauckhof.de, entre tantos outros.

Em 1974 chegava a vez do Brasil, quando foi criada a primeira fazenda biodinâmica, Estância Demetria, que hoje em dia está incorporada ao Bairro Demetria na cidade de Botucatu, estado de São Paulo,  www.bairrodemetria.com.br com escola, pousadas, lojas, consultórios médicos, editoras, e muitas outras iniciativas ligadas ou não a antroposofia. 


A biodinâmica veio naturalmente ganhando força por aqui e já se contabilizam inúmeras iniciativas do tipo. Vale lembrar que estamos muito longe dos números da Alemanha, que ainda é a primeira no ranking de produtores, mas com o boom de ecologia e sustentabilidade e bom senso pelo qual o mundo passa, a quantidade no Brasil vem aumentando rapidamente. No país Europeu esse boom já é comemorado há anos. Pelo mundo existem mais de 50 países com produções regulamentadas biodinâmicas. 

O que é Agricultura Biodinâmica:


Outrora, estrelas falavam aos homens,

o seu calar é destino cósmico;

a percepção do seu calar

pode ser sofrimento do homem terrestre.

No calado silêncio, porém, amadurece

o que os homens diziam às estrelas;

a percepção do seu falar

poderá tornar-se força do Homem-Espírito.

- Rudolf Steiner (1861-1925)



Há quem  diga que a biodinâmica é evoluir a agricutura para aquela praticada no final do século XIX. Isso quer dizer que os produtores rurais deveriam recuperar os sentidos e sentimentos que há muito se perderam, já que nos últimos anos, com a evolução tão rápida da tecnologia, ficamos muito dependentes das máquinas, do material e deixamos de lado o sentimental. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio.


A biodinâmica não permite o uso de agrotóxicos, nem fertilizantes químicos e nem tão pouco produtos transgênicos. Utiliza-se constelações e o conhecimento das fases da Lua para saber o que há de ser feito, e em qual momento trabalhar na lavoura. As plantas são influenciadas pelos astros da mesma maneira  que as marés sobem e descem de acordo com as fases da Lua. São feitas aplicações dos preparados biodinâmicos que servem para melhorar a qualidade do ambiente e consequentemente dos alimentos ali produzidos. Adubar significa, para quem pratica esta agricultura, tornar o solo vivo. Nesse sentido são previstas ainda práticas de conservação de solo e da natureza de modo geral. Também é exigida uma qualidade social dos trabalhos. Além disso, o que para mim é um dos pontos mais significativos, enxerga a fazenda como uma individualidade, um organismo vivo, integrado. Neste ponto pode-se pensar em diversas pequenas propriedades que interagem entre si.
 



Um simples exemplo: uma propriedade, ou conjunto destas, tem o pasto que alimenta os cavalos, as vacas, as cabras, estes ajudam no trabalho da terra, viram produto final e geram esterco usado na adubação das pastagens, do pomar, da horta que de novo pode retornar como alimento para as galinhas, os porcos e assim sucessivamente. Desta meneira só se pode criar uma quantidade de animais de acordo com o volume de alimento que se é capaz de produzir para estes, o que já evita aquelas criações em massa e equivale a dizer que os animais tiveram uma vida saudável, digna. Até mesmo as sementes são produzidas e selecionadas pelo próprio agricultor dentro de sua propriedade, promovendo assim, de forma natural, um melhoramento genético de suas espécies. Dentro deste contexto o produtor rural passa a se empenhar e fazer um trabalho de pesquisador. É comum esta forma de trabalho tão diferente atrair as pessoas da cidade que acabam se tornando frequentadores das propriedades por se sentirem bem naquele ambiente, além de grupos de estudantes que se interessam por essa enorme fonte de informações. 

Não é a toa que cada vez mais produtos advindos da agricultura biodinâmica são classificados como os melhores em suas categorias, com sabores extraordinários e qualidade premium, como é o caso do pinot noir mais famoso do mundo, o Romanee Conti. Esses sabores e produtos são a simples definição de valor agregado, de verticalização inteligente da agricultura a mesa. Esses produtos são os preferidos pelas pessoas de paladar aguçado, profissionais de alimentação e principalmente cozinheiros pelo mundo. A melhor maneira de se entender o valor de um produto dessa natureza é experimentar e comparar. 

Bom apetite! 

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Gustavo Mussato Goncalves é diretor de pesquisas agrícolas do estilogourmand, técnico agrícola formado pela ETE Benedito Storani de Jundiaí SP e bacharel em propaganda e marketing pela Universidade Paulista – UNIP. Gustavo é pós-graduado em Agricultura Biodinâmica pelo Instituto ELO / Universidade de Uberaba – UNIUBE e passou os ultimos dois anos especializando-se em Agricultura Biodinâmica em uma associação de fazendeiros biodinâmicos no Noroeste da Alemanha.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

TASMÂNIA -
um terroir desconhecido, sensacional e delicioso
queijos artesanais na ilha gourmand da Austrália

 42° 52' 50"S 147° 19' 30" E

Durante um jantar com amigos e com o chef Neill Perry em seu restaurante Rockpool em Sydney, conheci dois entusiastas da alimentação de qualidade, Eduardo e Kristian Juanas. Eles trabalham com produtos artesanais e nativos da Austrália. Entre ótimos vinhos Shiraz do incrível terroir de Barrosa, estávamos conversando sobre experiências sensoriais, quando ouvi a historia de um pequeno produtor rural na remota ilha Bruny no sul da Tasmania. Logo percebi que estávamos conversando sobre um artesão do sabor, o primeiro produtor de queijos de leite cru da Austrália. Fiquei entusiasmado equis saber mais detalhes . Eu já estava cogitando a possibilidade de ir visitá-lo.
No mesmo jantar o chef Perry falou sobre a sua última food trip na extraordinária e pequena ilha da Tasmânia, o menor estado Australiano, e também o mais rico em biodiversidade gourmand. Hobart, a capital da Tasmania fica somente a uma hora de vôo de Sydney. Fui dormir tentando adivinhar os sabores dos queijos da Tasmânia. No dia seguinte logo cedo eu já estava no telefone tentando encontrar o Nick Haddow, o artesão de quem o Ed havia falado na noite anterior. Encontrei um número de telefone e deixei alguns recados. Para a minha alegria, na mesma tarde o Nick ligou. Ele é o fundador e cheesemarker do laticínio Bruny Island Cheese Co. Batemos um papo ao telefone e marcamos um dia para almoçarmos juntos em seu laticínio.   


Cheguei em Hobart, a capital da Tasmania numa quinta-feira de manhã. No pequeno aerporto de Hobart aluguei um carro e fui até o centro da cidade. Eu havia marcado com o Nick no dia seguinte, então teria um dia para descobrir os encantos gastronômicos da Tasmânia.  


Lembrei-me das dicas do Neill sobre a qualidade e o frescor das frutas e verduras. Soube também que a Tasmania tem um dos áres mais puros do planeta. Todos os sábados no bairro conhecido como Salamanca, acontece todos os sábados o mercado-produtor com o mesmo nome, que reúne fazendeiros e produtores rurais locais, que se encontram para celebrar a boa mesa, ingredientes sazonais, gostosos e o prazer de trabalhar da agricultura a mesa. Existem pequenas e médias fazendas na Tasmania, com seus artesãos sensacionais, criando boutique farming em quase todos os cantos da ilha-estado. 

Nas proximidades do mercado Salamanca, existe um gourmet shop sensacional, chamado Wursthaus Kitchen. Na loja conheci o Peter Trioli, um profissional de alimentação premium da velha guarda, que trabalha com ingredientes de qualidade e origem desde 1975. Eu nem havia nascido ainda! Durante um papo dentro de sua loja, Peter contou que passou um período na Inglaterra e na Austrália, antes de comprar a loja em Hobart em 2003. Criada em 1985 a Wursthaus Kitchen ficou famosa em toda a Austrália por seus embutidos artesanais e cortes nobres de carne fresca. Os funcionários da loja são em sua grande maioria açougueiros, cozinheiros, sommeliers e gastrônomos que adoram comer bem e encantam os clientes nas conversas sobre métodos de produção de matérias primas, o cuidado com a fileira completa do alimento e harmonização.  


Os ingredientes da Tasmania são muito requisitados por restaurantes locais, mas também por chefs consagrados no mundo. O chef Japonês-Australiano Tetsuya Wakuda por exemplo, é um deles. Um dos grandes nomes da gastronomia no mundo, ele visita a Tasmania frequentemente, adora os ingredientes “boutique” de pequenos produtores rurais e sempre tem tempo para um café com o Peter. Amigos há muitos anos, Peter dizia com orgulho que Tetsuya faz parte de uma elite de chefs estrelados internacionalmente que tem como filosofia valorizar sabores simples e técnicas de preparo que valorizam as matérias primas, o trabalho dos produtores rurais.  A cultura agrícola local valoriza os sabores bons, limpos e justos, como diria o professor Petrini. A ilha produz frutas, principalmente berries que são vendidas frescas. Ate mesmo trufas negras = que acredito sejam melanosporum - começaram a ser encontradas perto das cidades de Hobart e Lauceston. Queijos extraordinários, leite, cremes e também fazendas beneficiadoras de carnes da raça Wagyu, carnes de caça, produção de mel nativo, azeite de oliva, wasabi, salmão fresco, abalone selvagem e ostros são alguns dos ingredientes de qualidade da Tasmania.

A cultura do azeite extra virgem de oliva está muito presente hoje em dia na Tasmania. As primeiras mudas de oliveira chegaram à ilha por volta de 1950 trazidas por imigrantes europeus. As primeiras variedades de azeitonas plantadas na Tasmania foram Frantoio, Barnea, Verdale, Manzanilla e a americana Mission. São azeites deliciosos que aos poucos começam a ganhar o cenário mundial. Em 2005 alguns produtores locais criaram o Tasmanian Olive Council, um conselho regulador da qualidade e origem dos produtos. Estima-se que hoje em dia existam mais de 150.000 oliveiras plantadas na região sul da ilha. Alguns promissores azeites do terroir da Tasmania tem chamado a atenção em competições sensoriais na Europa. 

Neste mesmo papo com o Peter, ele me mostrou as famosas ostras da Tasmania, cultivadas em todas a costa da ilha. Pelo interesse e ótimo feeling durante o papo, ele decidiu me levar de carro a um lugar chamado Barilla Bay, uma linda enseada a 14 km de Hobart, onde um produtor local amigo seu, de quem o Peter compra todas as semanas ostras frescas, nos recepcionou para uma degustação. Que delicia! As ostras do Pacifico (espécie crassostrea gigas) que são cultivadas na Tasmania já são uma realidade sustentável hoje, onde cerca de 70 produtores em diversas partes da ilha cultivam e comercializam aproximadamente 4 milhoes de dúzias por ano. 


Na volta da fazenda de ostras, o Peter perguntou se eu sabia da existência de um mel nativo da Tasmania. Muito legal. Eu estava enlouquecido e muito feliz com as sensações locais. Fantástico. Na verdade eu conheci o Leatherwood honey pela primeira vez na Itália, porem não sabia exatamente o que era e o que representava. Soube então que o néctar da flor da árvore leatherwood (Eucryphia lucida) ou grass tree em inglês, produz um mel muito gostoso, com uma textura cremosa, notas aromáticas de bálsamo, frutas cítricas e flores brancas. Esse mel possui uma acidez baixa e é um pouco mais liquido do que o mel europeu. De alguma forma, poderíamos ate compará-lo com o nosso mel nativo do Brasil, das abelhas canudo no Satere Mawe na Amazonia pela sua consistência mais líquida. O leatherwood é uma planta / árvore autóctone da Tasmania encontrada nas florestas encharcadas no lado oeste da ilha. Mais de 70% do mel produzido na Tasmania é leatherwood. 


Acordei cedo na sexta feira, peguei o carro e fui sozinho atá a ilha Bruny encontrar o Nick. Na minha frente duas horas de carro e ferry boat em direção ao sul, passando por um terroir lindíssimo, com muitos albatrozes. Quase um cenário esquecido no tempo. Chegando perto da balsa que me levaria ate a ilha Bruny, passei por um terroir surreal, repleto de parreiras chamado Huon Valley. Não tive como parar desta vez, mas ainda volto por lá para provar os vinhos biodinâmicos. Aliás, a industria de vinhos da Tasmania começou a ser desenvolvida no começo da década de 1970. Com um solo argiloso o setor vitivinicola local se caracteriza por uma produção boutique de vinhos artesanais, feitos com uvas chardonnay, riesling e pinot noir, porem também Shiraz como na Austrália. Nos últimos anos com o crescimento do turismo rural, muitas vinícolas da Tasmania começaram a criar food trips e programas culturais para oferecer ao visitante uma experiência completa, com acomodações boutique, tour nos vinhedos e caves.


Ao lado de outra fazenda de ostras, o laticínio do Nick é cercado por arvores. O lugar é pequeno, porém muito bem arquitetado. São três estruturas construídas, o laticínio, o Artisan Cheese Shop e a casa, onde ele mora com a mulher e o filho de 2 anos. Muito simpático com mais ou menos 40 anos, ele estava ao lado de fora do cheese shop me aguardando quando cheguei. Nos conhecemos e fomos direto ao laticínio. O Nick Haddow nasceu e formou-se em hotelaria na cidade australiana de Adelaide. Logo cedo, fascinado com o sabor de queijos artesanais, resolveu viajar para estudar e aprender técnicas italianas, espanholas, francesas e inglesas de preparo e temperaturas de cremes e queijos. Durante 10 anos ele trabalhou nas cidades italianas de Caserta e Battipaglia, em Londres e Melbourne. Achei muito bacana também e interessantíssimo um projeto que ele me contou sobre melhoramentos produtivos e sensoriais em um pequeno laticínio nas montanhas ao sul da Índia, a 4000 metros de altura perto das montanhas Annapurna no Nepal. 


Hoje em dia ele trabalha com 3000 litros de leite cru por semana, produzindo 10 toneladas de queijos artesanais por ano.  Dentro do laticínio é tudo muito bem organizado. O que me chamou a atenção foram as quatro salas de descanso e maturação de queijos ao fundo da sala de produção. Na porta de cada uma delas, um letreiro dizendo “White moulds” ou moldes brancos, “Washed Rinds” ou cascas escovadas, “Cooked Curd” massa cozida e a sala do “Tom”. Cada sala é utilizada em épocas especificas do ano, de acordo com as propriedades organolépticas do leite local. Achei sensacional as pequenas salas, com prateleiras de madeira repletas de formas de leite se transformado em deliciosos queijos dos mais diversos tipos. Foi ótimo conhecer a produção.


Saímos do laticínio e nos sentamos no jardim para conversar antes da degustação. Entendi que as condições climáticas favoráveis e melhor temperadas do que na Europa, propiciam ao gado local, formado em sua maioria por Jersey e holandês, pasto fresco o ano inteiro sem a necessidade de complementar a alimentação com ração industrial. O Nick comentou brevemente sobre a escassez de bons insumos para produtos lácteos no mundo hoje. Ele tem trabalhado com coalho animal porem em alguns queijos prefere usar o coalho vegetal.


Após mais de duas horas de um ótimo papo, fomos ate o cheese shop onde a sua mulher havia preparado uma linda degustação para nós. Praticamente todos os queijos produzidos por eles estavam na mesa. Alem do delicioso leite fresco dos rebanhos próximos ao laticínio, o Nick também utiliza leite de cabra para alguns queijos. Um dos diferenciais sensoriais dos seus queijos além das sensações belíssimas na boca são os nomes dados por ele aos produtos .. O.d.o, Oen, Otto, Mr Palomar, Lewis, The Bastard, 1792, Gabriel, Tom e C2. Pode ate parecer estranho, mas cada um deles tem uma historia para contar, quase um romance do sabor que ele sempre conta quando explica como os queijos são feitos. 


BRUNY ISLAND CHEESE CO.
Alguns dos meus queijos favoritos são; 

1792
O ano em que os franceses chegaram na Tasmania. Um queijo macio de leite bovino, maturado em pranchas de pinheiros do terroir de Huon. É um produto artesanal de coloração rosa-alaranjado, resultado das formas serem escovadas com água e sal regularmente para estimular as bactérias na casca, responsáveis pelos complexos sabores e aromas

C2
É um queijo clássico também de leite bovino, que chega a ser envelhecido por ate 12 meses para desenvolver suas qualidades sensoriais, com um doce aroma e sabor amendoado.

OEN
Um queijo delicioso, cremoso e sem igual. É um dos preferidos do Nick. É um queijo de leite bovino que com alguns dias recebe uma lavagem com vinho de uvas pinot noir, antes de ser embrulhado em folhas de parreiras para a maturação.

SAINT
Um queijo que pode ser consumido tanto fresco para um sabor delicado de leite, com seu interior macio e casca branca, como também envelhecido ate quatro meses para sensações mais complexas. Seu nome vem da região central da França, onde pequenos vilarejos batizam seus queijos a partir de nomes de santos locais.

TOM
O Nick começou me contando sobre esse queijo dizendo “É um cara simples!”. O Tom é um queijo de leite bovino, curado e com a casca natural, muito gostoso e famoso no norte da França (tomme) e norte da Itália (toma). É um queijo fácil porem com uma técnica de maturação complexa.

GABRIEL
Produzido com 100% de leite caprino, é um queijo fresco e macio


“Os queijos que eu faço são produtos das minhas food trips e treinamento profissional nos terroirs de queijos artesanais mais importantes na França, Itália, Espanha e Inglaterra. São queijos que eu adoro fazer e comer. Estes queijos sao tambem unicos da Tasmania. Eu prezo por um estilo artesão e tradicionalista, que reconhece que queijos fantásticos foram feitos durante séculos antes da tecnologia moderna ser utilizada, e acredito apaixonadamente na maneira antiga e tradicional de fazer e envelhecer queijos. Para mim, cheesemaking é uma busca por integridade, autenticidade e sabor.”  
- NICK HADDOW


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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura & comunicação alimentar e sócio-fundador do estúdio boutique de pesquisa e inovação no agronegócio e gastronomia estilogourmand ltda, com escritórios no Rio de Janeiro e Madrid

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Borough Market - Aromas, cores e sabores desde 1276 em Londres

 51°30′17.67″N 0°5′27.92″W
A mais importante referência em food shopping da Inglaterra é o mercado Borough de Londres. Um passeio pelas suas estreitas ruelas, preferencialmente aos sábados pela manhã, entre vendedores de queijos artesanais, barracas com verduras e legumes frescos colhidos nos arredores de Londres, curtindo aromas e sabores, é uma experiência sensorial extraordinária.


A primeira vez que visitei o Borough market foi no inverno de 2006. Fazia muito frio em Londres, o dia estava nublado com uma leve neblina pela manhã. Eu havia escolhido o mercado para realizar um projeto de antropologia alimentar, orientado pela celebre Carole Cunningham, uma das feras do assunto no mundo. Estive em Londres durante alguns dias conversando com freqüentadores do mercado, comerciantes e produtores rurais que todas as semanas levam seus produtos ate o Borough market. Apesar do frio, os curiosos e compradores não estavam muito preocupados com a temperatura. O mercado está sempre lotado e as vezes é dificil andar entre a multidão que se aglomera em frente as varias barraquinhas. Mais de dez mil pessoas visitam o Borough market todos os sábados.


O Borough market fica na rua Borough High, localizada perto da catedral Southwark na saída sul da London Bridge. O mercado existe, acredite se quiser, desde o ano de 1276, apesar de ter passado por algumas mudanças. Hoje em dia funciona diariamente pela manhã como mercado atacadista de hortifrutigranjeiros e nas sextas e nos sábados está aberto durante todo o dia para o publico em geral. Historicamente o Borough market sempre foi um mercado de frutas e verduras, porem nos últimos anos mais e mais artesãos do sabor, com produtos variados e de qualidade tem feito parte de uma seleção incrível de ingredientes e sensações gastronômicas.

Dentro do Borough market existem duas áreas distintas. A entrada sul nos leva para a parte aberta do mercado onde estão as barracas e os estandes com lonas coloridas que oferecem uma grande variedade de comidas e ingredientes quentes, queijos, méis e flores. Filas enormes são formadas em frente aos estandes mais famosos e conhecidos do mercado, onde kebabs’ e baguetes fresquíssimas dos clássicos hog roasts, ou leitão assado, são servidas e consumidas aos milhares todas as semanas. Mas não é só isso, pois as vieiras grelhadas na hora, ao lado dos steaks de avestruz alucinam os sentidos. Acredito que muitas pessoas somente vão ao Borough market para deliciarem-se com os sabores locais preparados na hora. Percebi que existem muitos freqüentadores que não carregam sacolas de compras, param em todos os estandes e estão sempre mastigando algo com um sorriso no rosto. A parte coberta na área norte do mercado é dedicada as frutas e verduras frescas, chocolates e carnes nobres. Aparentemente do lado de dentro as coisas são mais organizadas.


As pessoas tem um papel fundamental na diversidade cultural do Borough market. Entre agricultores, vendedores e cozinheiros, podemos identificar compradores assíduos que cumprimentam os vendedores, turistas com câmeras e é claro, foodies de todas as partes do mundo que visitam o mercado com uma enorme emoção. Por Londres ser considerada uma das cidades com uma das maiores diversidades étnicas da Europa, não é tão fácil descrever a origem de todos.

Tenho certeza que todos os continentes, todas as religiões e muitos grupos étnicos estão representados em um só lugar. É uma delicia conhecer detalhes sobre essa verdadeira meca de produtos de qualidade. Durante uma caminhada conheci uma senhora chamada Susan Elliot que me contou sobre os seus hábitos de compras semanais no Borough market. Susan, como a maioria dos ingleses, se preocupa com a qualidade dos produtos que está comprando. Ela conta orgulhosa conhecer a maioria dos vendedores pelo nome e se diz satisfeita por comprar produtos e ingredientes que tem certeza serem gostosos, limpos e justos. “Mesmo custando aqui um pouco mais do que no supermercado, vale muito a pena sentir prazer ao comprar o que vou comer, pois sei e conheço quem produziu e como”.

Além de sabores e aromas encontrei também muitos sons peculiares no Borough market. Procurando pelo mais característico, fui até o estande de legumes do senhor Brian Jones que durante horas todas as sextas e sábados motiva os compradores chamando a sua atenção com uma quase-canção sensacional .. “One Pound a bowl or a bag. I’m going home. One pound you take it all”.

A variedade de produtos de qualidade, orgânicos, do comércio justo e até biodinâmicos impressiona. Em sua grande maioria, os produtores se orgulham das diversas certificações oficiais que são apresentadas tanto nos produtos como também nos próprios estandes. De uma maneira geral, o Borough market poderia ser classificado como uma charmosa mistura de um farmers’ market (mercado produtor) e um elegante centro gourmet.


Conversando com Evans Dillmore, membro da terceira geração de uma família produtora de queijos orgânicos do País de Gales que comercializa seus produtos no mercado desde 1940, pude perceber que a comunicação é uma ferramenta importantíssima para o sucesso do Borough market. Evans acha que a educação do gosto promovida por celebridades locais da culinária como Gordon Ramsey, Heston Blumenthal, Giorgio Locatelli e Jamie Oliver está mudando os hábitos de consumo de alimentos dos ingleses, porque estes chefes estrelados usam a mídia de massa para educar a população sobre a importância tanto de saber a origem do que comemos, como também conhecer detalhes sobre como foram produzidos os ingredientes que levamos para casa todos os dias. Informaçoes que não se encontram em supermercados.


Antes de me despedir de Evans, perguntei sobre os queijos ingleses e onde poderia encontrar uma seleção dos melhores produzidos na Inglaterra. Sem necessidade de pensar duas vezes, Evans olhou para os seus queijos expostos harmoniosamente na nossa frente, sorriu e me contou que a segunda melhor seleção poderia ser encontrada na clássica loja de queijos finos Neal’s Yard Dairy, uma referencia em seleção, maturação e comercialização de queijos surreais da Inglaterra e Irlanda. A loja fica dentro da área coberta do Borough Market e fui fundada por seu amigo Randolph Hodgson, um cheese master que mantém pessoalmente uma relação direta com mais de setenta produtores espalhados por todo o Reino Unido. A maioria dos queijos são produzidos com leite cru e a variedade é surpreendente. É possível encontrar desde os clássicos ingleses Montgomery Cheddar, Colston Bassett Stilton, Kirkham’s Lancashire e Stichelton, os nobres representantes escoceses Seator’s Orkney e Strathdon, assim como algumas relíquias sensórias da Irlanda como o Gubbeen, St Gall e St Tola.


Os mercados centrais ou mercados de rua na Europa existem ha séculos. Podemos dizer que a própria historia da Europa foi construída em torno de seus mercados, suas localizações e os seus grandes comerciantes, que viajavam por todo o continente trocando seus produtos. De acordo com historiadores, os fenícios chegaram na região de Cornwall ao sul da Inglaterra, onde compraram metais e latas, e trocaram produtos. Os antigos gregos viajaram por toda a Europa trocando muitos produtos alimentares. Os comerciantes romanos contratavam grandes embarcações para transportar preciosos carregamentos de vinho, azeite de oliva e grãos. Muitas cidades, inclusive, foram construídas ao redor dos mercados centrais durante a Idade Média.

E uma nova Europa está sendo construída dentro de um modelo social moderno com bases em suas tradições culturais. Com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da população, o governo Europeu lançou na década de 1990 uma iniciativa chamada EMPORION. Uma forte catapulta promocional e econômica foi desenvolvida para investir na comercialização de produtos de qualidade, estimular os cidadãos de todos os países membros da Uniao Europeia a consumir mais produtos frescos, de origem local e deliciosos. Mercados centrais são a melhor ferramenta para promover a saúde publica com o foco em uma nutrição adequada para todos. Os mercados centrais contribuem para a vida social, econômica e turística das cidades, alem de promover um maior contato entre os cidadãos. Os mercados centrais estão mais perto das pessoas do que os modelos de super ou hipermercados, que em sua maioria são armazéns fechados que somente comercializam produtos industrializados, com ingredientes artificiais, muito xarope de milho, sabores com notas residuais desagradáveis e grande marcas onde somente o design das embalagens é relevante.

Mercados centrais Europeus como Porta Palazzo em Turín, Borough Market em Londres, La Boqueria em Barcelona, Mercado de San Miguel em Madri, Mercado Central de Lyon e Központi Vásárcsarnok em Budapeste são alguns bons exemplos do que sistemas integrados da agricultura a mesa fazem para melhorar as cidades e sobretudo a qualidade de vida de seus cidadãos.

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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura & comunicação alimentar e sócio-fundador do estúdio boutique de pesquisa e inovação no agronegócio e gastronomia estilogourmand ltda, com escritórios no Rio de Janeiro e Madrid

sexta-feira, 15 de abril de 2011

TSUKIJI, O Maior Mercado de Peixes do Mundo

35° 40′ N 139° 46′ E
O Japão é uma delicia, muito além do que se possa imaginar. Durante os últimos anos estive algumas vezes nas cidades de Tóquio, Kobe, Shodoshima e Osaka. Na primeira vez que visitei o país, me encantei por uma cultura poética, onde o contemporâneo e o tradicional estão lado a lado todos os dias, oferecendo ao olho nu uma percepção detalhada do design de sabores sensacionais.


Acordei as duas da madrugada para encontrar os amigos Eriko Shiba e Amano Sakamoto, que já me aguardavam em Akasaka. Era uma manhã fria de marҫo e ainda faltavam algumas horas até o sol nascer. Fomos de carro do bairro alto de Akasaka até o centro de Tóquio, mais especificamente na área chamada Tsukiji, a oito quarteirões do bairro central de Ginza, onde desde o século XVI existe o maior mercado de peixes do mundo em uma área de vinte e dois hectares, as márgens do rio Sumida. A primeira vez que visitei o famoso mercado Tsukiji tive a alegria de estar acompanhado por dois craques da alimentação local, profissionais de gastrônomia do grupo Mitsukoshi, Eriko e Amano. Eu estava em Tóquio realizando uma pesquisa sobre o mercado gourmet, luxo sustentável e food design e aproveitei uma manhã sem reuniões para mais uma food trip, dessa vez uma fantástica experiência gastronômica sobre tradições e hábitos relacionados a pesca e ao consumo de peixes no Japão.


O mercado de Tsukiji comercializa algo em torno de duas mil toneladas de peixes e frutos do mar por dia. Para termos uma idéia de grandeza, o segundo maior mercado de peixes do mundo, o Fulton Fish Market, dentro da ilha de Manhattan na cidade de Nova York comercializa cento e quinze toneladas por dia.
 


Chegamos nos arredores do Tsukiji antes das três da manhã, logo após alguns shots encorpados de café para agüentar o frio e o sono da madrugada japonesa. O senhor Kedo já nos aguardava perto de uma das entradas laterais do mercado. O pai do Amano é amigo de infância do senhor Kedo, um dos antigos diretores do mercado Tsukiji, que gentilmente se dispôs a passar algumas horas conosco conversando sobre o mercado. Eu estava ansioso para poder entrar nos galpões onde acontecem os grandes leilões de atum, onde os preços dos maiores peixes podem chegar até cento e setenta mil dólares. Muito simpático e sorridente, o pequenino senhor Kedo, no auge dos seus setenta anos, comentava que estávamos prestes a descobrir um novo mundo sensorial, onde a beleza artística entre o oceano e a mesa nos surpreenderia através de seus mais importantes autores, os pescadores e artesãos que trabalham todos os dias no Tsukiji.

Uma das histórias sobre a origem do mercado, de acordo com o senhor Kedo, começa no século dezesseis durante a dinastia do shogun Tokugawa, que após construir o castelo e a cidade de Edo, hoje em dia chamada de Tóquio, convidou pescadores da região de Tsukudajima em Osaka, para fornecer peixes e frutos do mar ao castelo de Edo. Além do fornecimento semanal ao castelo, os restos eram inicialmente vendidos perto da ponte de Nihonbashi. Depois disso e para suprir as demandas de uma população crescente, a zona de Nihonbashi ganhara seu primeiro mercado de produtos frescos. Foi também durante o período de Tokugawa que outros mercados, como os de verduras de Kanda e Senju, foram criados. Em 1923 um terremoto chamado Kanto destruiu completamente os locais onde originariamente os mercados estavam desde sempre. De maneira inovadora para a época, a prefeitura de Tóquio reconstruiu os mercados de Tsukiji e Kanda de maneira a proporcionar um acesso mais fácil e inteligente de ingredientes frescos e saudáveis a população de Tóquio.



Chegando a hora de começar o percurso pelo Tsukiji, adentramos no mercado e logo percebemos uma tumultuada atmosfera, onde estávamos andando entre engradados plásticos, caminhões parados e driblando pequenas carrocinhas motorizadas e velozes que percorriam as estreitas ruelas, levando consigo atuns de mais de quatrocentos quilos até os galpões onde acontecem os leilões, onde o atum é selecionado de acordo com a qualidade e origem. São quase sessenta mil pessoas trabalhando todos os dias no mercado. Quando estávamos chegando ao primeiro galpão, encontramos o senhor Shiro Kamashita, um amigo do senhor Kedo, que representa a terceira geração da sua família que trabalha no Tsukiji.

O senhor Kamashita, assim como seus antepassados, trabalha avaliando a qualidade e o frescor do atum, checando todos os peixes que são leiloados, da cauda até as guelras, e de vez em quando experimentando um pedaço de carne fresca também. Os leilões de atum no Tskuji acontecem em vários galpões separados, geralmente por padrões de tamanhos do atum, se os peixes são frescos ou congelados, nacionais ou importados. Todo o atum é sempre exposto no chão, lado a lado, com especificações técnicas escritas em pequenos tags colocados no peixe para a fácil identificação do comprador. Alguns pescadores também cortam o rabo do atum para que os compradores possam ver a qualidade do peixe pela coloração da gordura na carne. 



Cada leilão começa quando o leiloeiro toca um sino de metal e quase que instantaneamente acaba segundos depois. No começo foi difícil para eu acompanhar os detalhes. O mais incrível do espetáculo dos leilões de atum são os sinais de oferta a um lote específico. Somente os leiloeiros são quem gritam rapidamente os preços iniciais, gingando o corpo como se fosse uma dança, prestando atenção nos lances recebidos e em seus assistentes para ter certeza que está tudo anotado quando o lote for encerrado. São eles quem decide a ordem do leilão de acordo com a qualidade dos peixes, sendo os melhores com mais equilíbrio entre a carne e a gordura, com aparência marmorizada como a carne da raça bovina japonesa Wagyu, um formato assimétrico e arredondado do dorso, sem sinais de machucados durante o combate no momento da pesca.
Os pescadores, todos de galochas e a maioria com suspensórios, ficam por perto para assegurarse da vendas. Os compradores por sua vez, somente fazem as ofertas com sinais manuais, em silêncio. Aliás esses sinais são impossíveis de serem compreendidos. São como se fossem códigos antigos, onde os compradores encostam as pontas dos dedos, umas nas outras em seqüência velozes. Surreal!

Existem oito espécies de atum no mundo sendo quatro espécies as principais; Todas as espécies são migratórias. O Bonito do norte ou atum branco (em inglês northern bluefin tuna) é um dos mais apreciados e é encontrado nos oceanos Atlântico e Mediterrâneo, o bonito do sul encontrado na parte sul de todos os oceanos, o atum-olho-grande (em inglês bigeye tuna) e a albacora–de-lage ou atum amarelo (em inglês yellowfin tuna). A carne mais cara do atum, e um luxo comestível em toda a Ásia, chama-se otoro. É a carne encontrada no entorno da barriga do atum, embaixo da barbatana peitoral.

Andando pelos galpões percebi que os peixes tinham origens distintas, como Austrália além do Japão, mas jamais iria imaginar que encontraria um atum mexicano. Conversando com o senhor Kamashita, descobri que o atum importado sempre tem um pedaço maior de carne vermelha exposta do que o atum japonês. Isso acontece porque o peixe importado esta fora d água a mais tempo e também porque viajou mais ate chegar em Tsukiji para o leilão.


E por falar em viajar para o leilão, conheci durante essa manhã um pescador americano do estado de Massachussets chamado Jim Edward. O conheci ao mesmo tempo em que o senhor Kedo me apresentou ao senhor Toshiharu Ochi, um dos diretores atuais do Tsukiji. Nos sentamos todos na saída do galpão para esperar por Eriko e tomarmos um copo de chá puer. Jim nos contava que visita o mercado frequentemente, até porque é um dos fornecedores de bonito do Tsukiji. Na costa de Massachussets, a uma distancia de até cento e sessenta quilômetros do litoral, barcos americanos trabalham com a pesca sustentável de linha, ao invés da pesca predatória com redes de arrastão.

Segundo Jim, a logística do atum de alto valor agregado acontece como um relógio suíço. No momento que o atum é pescado, o barco envia uma mensagem de radio até os seus traders em Boston. No momento em que o barco ancora, um caminhão já esta a sua espera para receber o atum parcialmente congelado, cuidando da temperatura a cada minuto, pois a carne perde seu valor se for cristalizada. O atum é então levado até o aeroporto internacional de Boston onde pega o primeiro vôo até o Japão, chegando no Tsukiji em apenas 48 horas depois de ser retirado da água. O curioso é que até o verão de 1972 o atum chamado de bluefin não tinha valor comercial para pescadores americanos. Era um produto utilizado para ração de gatos em lata. Quem diria!


Desde 1970 pescadores estrangeiros perceberam a oportunidade de explorar o mercado japonês, por se tratar de uma demanda continua por atum de qualidade. No ano de 2003 o Japão importou mais de doze bilhões de dólares em atum, muito mais do que qualquer outro país, de acordo com a FAO, Food and Agriculture Organization das Naçoes Unidas. O Japão consome um terço de todo o atum do mundo, cuja a produção estima-se ser de seiscentas e trinta mil toneladas. São quase seis quilos de atum por pessoa por ano. A maioria do atum e de alta qualidade, atum para sashimi, não o tipo de atum vendido em lata como no resto do mundo. Até antigamente, quase todo o atum vendido na Japão passava pelo Tsukiji, que em 1930 começaram os leilões diários de atum, camarão e ouriço. A variedade de opções dentro do Tsukiji é entusiasmante. Peixes espada frescos e congelados do Iran e Cidade do Cabo, caranguejo gigante, lulas, todos os tipos e origens possíveis de camarões como o camarão kuruma da Ásia, o camarão do Alaska, o camarão doce japonês, o camarão americano de Maine, o peixe venenoso e muito gostoso fugu nadando em tanques isolados, robalos, linguados, polvos, sépias, cavalos marinho, enguias de todos os tamanhos, vieiras, ostras da baía de Tsunenori e tantas outras coisas mais.

E por falar nisso, também estivemos em um leilão de ouriços frescos em um dos corredores do Tsukiji, logo após sairmos dos galpões de atum. Os ouriços frescos são uma delicia, com um gosto de mar, uma textura macia e suave. Os pequenos leilões de ouriços começam por volta das cinco da manha, após o do atum. Dentre as origens que encontrei estavam os famosos ouriços de Hokkaido ao lado de ouriços frescos da Califórnia. Os preços variam muito em relação a origem, por exemplo, cem gramas de ouriço japonês de Hokkaido custa aproximadamente sessenta dólares, enquanto os americanos custam algo em torno de oito a treze dólares pela mesma quantidade.


Já se aproximavam das oito horas da manha e estávamos com fome, especialmente depois de assistir um baile de ingredientes frescos. Ao perguntar ao senhor Kedo sobre algum lugar onde poderíamos comer, ele sorriu e continuou caminhando pelas ruas estreitas do mercado até chegarmos a um beco sem saída. Eu pensei que estávamos ainda por conhecer alguma coisa bacana do mercado, mas para a minha surpresa, havíamos acabado de chegar num pequeno restaurante, sem muitas placas e sem mesas. Sentamo-nos no bar em frente a dois cozinheiros japoneses que preparavam peҫas ornamentais, utilizando somente arroz servido sob sardinhas, enguias e mackerel, atum, ovas de atum, lulas, otoro, fígado de bacalhau, intestinos cru de kawahagi com ervas frescas, e também uma novidade, o chutoro, uma carne mais marmorizada ainda do que otoro, com mais teor de gordura que simplesmente desmancha na boca. Poderíamos dizer que é praticamente um foie dos mares. Dentro do Tsukiji existem alguns poucos restaurantes que abrem ainda de madrugada e servem deliciosos cafés da manha ao melhor estilo japonês.

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Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura & comunicação alimentar e sócio-fundador do estúdio boutique de pesquisa e inovação no agronegócio e gastronomia estilogourmand ltda, com escritórios no Rio de Janeiro e Madrid

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