sexta-feira, 13 de agosto de 2010
Andorra, o sabor dos pirineus
A minha curiosidade em conhecer o Principado de Andorra já vinha de longa data, desde 2007 pra dizer a verdade, quando ouvi um papo sobre a Rota do Ferro, jantando com amigos em Oslo. Então tive a oportunidade de conhecer Andorra, convidado pelo projeto de pesquisa sobre a raça bovina Bruna d’Andorra do governo local. De Madrid fui até Barcelona e de lá continuei de carro até Andorra La Vella, a pequena capital do principado. Cheguei em Andorra no início de uma tarde fria de outono nos Pirineus e logo encontrei o secretário de agricultura, Valenti Casals.
Andorra é um terroir escondido entre dois países, onde 70.000 pessoas falam principalmente os idiomas Catalão e Francês. Andorra está localizada dentro dos Pirineus, a cadeia montanhosa entre a França e a Espanha. Durante as últimas décadas, a economia principal de Andorra tem sido o turismo. Apesar das atividades agrícolas terem perdido terreno no passado recente, existe hoje um grande movimento público-privado para o resgate das zonas cultiváveis e estímulos para a produção agropecuária sustentável na região, com o objetivo de gerar uma personalidade gastronômica de alto valor agregado, basicamente complementando um turismo existente. No passado o modelo agrícola de Andorra foi baseado na monocultura do tabaco, aparentemente sem motivos comprovados de qualidade superior das safras. Apesar do tabaco ainda ser o cultivo principal hoje em dia, a agricultura local está em plena transformação e desenvolvimento. Batatas, plantas medicinais, pecuária, frutas, laticínios e ervas frescas estão sendo estimulados pelo governo.
la ruta del hierro
a rota do ferro
Desde o século 17 até o final do século 19, Andorra foi uma importante região de extração, transformação e comercialização de ferro. A mina la Farga Rossell no vilarejo de Llorts era a mais importante da região. Foi construída em 1872 e funcionou também como atelier siderúrgico. Pelo fato de Andorra sempre ter tido um solo rico em ferro, alguns chefs do principado decidiram criar "A Rota do Ferro", um percurso gastronômico com paisagens surreais e sabores deliciosos, onde a culinária tradicional é apresentada utilizando ingredientes frescos cultivados em Andorra, com menus oferecendo uma proposta de pratos ricos em ferro. O ferro e um dos metais mais abundantes do planeta. E essencial para a maioria das formas de vida e também para a fisiologia humama. Naturalmente temos uma quantidade media de 4.5g de ferro no nosso organismo. O ferro é ótimo para um bom funcionamento do sistema respiratório, alem de ativar o grupo de vitaminas B, estimular a resistência física e ajudar a formar proteínas nos músculos.
Em Llorts, encontrei o chef Oscar Magi, dono do bistro La Neu. Quando começamos a conversar, o Oscar perguntou se eu era carioca. Depois de altas risadas e de saber que Oscar trabalhou por dois anos no Brasil, descobrimos que até temos uma amiga em comum. Oscar começou a carreira com 14 anos em um restaurante chamado Pantomaca no vilarejo de Palau de Plegamans, perto de Barcelona. Hoje com 30 anos, e depois de ter passado sete anos se dedicando a pastelaria na Dalivila em Santceloni, e ter passado por ótimas escolas, como o restaurante Calble em Igualada, trabalhando com Javier Ramon; Cambarina no parque natural de Montseny; além de ter trabalhado no Hotel Ritz de Andorra com o chef Javier Arnaldo, Oscar é um dos chefs mais prestigiados em Andorra hoje em dia. Então o menú degustação foi mais ou menos assim: croquetes de cogumelos selvagens com sálvia fresca, salada de salmão fresco, com emulsão de maracujá e espinafre, foie fresco com geléia de figos sem açúcar, creme de batatas com ovos de codorna, um leve toque de cogumelos chanterelles e cassis e carne maturada D.O. D’Andorra (uma das carnes mais incríveis que já experimentei) com cogumelos porcini fresco. Além do restaurante do Oscar, outro chef local também utiliza e promove a raça Bruna d’Andorra. Chama-se Carles Flinch, um discípulo do espanhol Pedro Subijana.
Depois de um almoço fantástico, Oscar me contou um pouco sobre a gastronomia em Andorra. Em 2004 quatro cozinheiros de Andorra decidiram criar a La Fogaina dels Pirineus. Pablo Urcelay, Alberto Coll, Pere Vilalta e Christian Zanchetta, esse último manteve por 4 anos a única estrela Michelin de Andorrra com o restaurante Aquarius. Um grupo bem bacana que se reúne frequentemente e que todos os anos entre outubro e novembro organizam eventos com cogumelos selvagens, trufas frescas e outras matérias primas locais, nas pequenas cidades de Ordino, Escaldes, la Massana e Llorts. Eles são fascinados pelo tema "educação do gosto", e são pioneiros no assunto em Andorra. No mês de outubro também acontece La Massana Fogons, dias inteiros com a apresentação e degustação de todas as variedades de cogumelos selvagens encontrados na região.
os cogumelos dos pirineus
E por falar em cogumelo, é claro que resolvi procurar alguns colhedores de cogumelos selvagens na região para conhecer as variedades locais. Expliquei ao Oscar que eu havia trabalhado em uma empresa de trufas e cogumelos selvagens por 2 anos em Bologna na Itália, e que adorava conhecer novos terroirs de coleta, novas variedades e novos sabores. Animado, o Oscar fez algumas ligações e em menos de uma hora, chegou ao restaurante o senhor Jordi Baró, um homem vestido de caçador, com casaco verde escuro, de barba e com quase 2 metros de altura. Sentou-se a mesa conosco, tomamos um copo de vinho juntos antes de começarmos a ouvir altas histórias sobre cogumelos na região. O Sr Baró aprendeu a catar cogumelos selvagens com o seu avô. Principalmente no outono, depois de chuvas nas montanhas, ele parte do centro da cidade de Llorts para buscar os cogumelos espontâneos boletus edulis ou porcini, catarellus cibarius, ou chaterelles em inglês e o incrível morchella esculenta, ou morel. Uma delícia conhecer o Sr Baró, os detalhes que ele nos contava sobre a nova geração de apaixonados por cogumelos que já começam a subir montanha acima para aprender com ele as técnicas de colheta e preservação. O Senhor Baró descrevia também que os coletores de cogumelos selvagens são os maiores protetores dos bosques e florestas. Sempre fazem questão de ser delicados na hora de pegar o cogumelo. Dia longo, precisava acordar cedo para encontrar o Valenti.
mel de montanha
Assim que encontrei Valenti na manhã seguinte para tomarmos café juntos, começamos a conversar e traçar algumas das food trips que faríamos para conhecermos a rota do mel, assim como um apicultor renomado localmente pela qualidade de seu mel. Existem vários pequenos apicultores no principado, mas a maioria produz somente o suficiente para a família e amigos mais próximos. São méis extraordinários, muito aromáticos, multi-florais, produzidos por abelhas que voam entre as montanhas dos Pirineus. Fomos recebidos pelo senhor Josep Maria Goicoechea perto de sua propriedade, nos arredores da capital Andorra La Vella. Josep Maria nos contou entusiasmado sobre o concurso de mel em Toulouse, França que ganhou, mas principalmente sobre a o novo selo de qualidade que estão criando, juntamente com o agrônomo Julio Rivas, agregando valor ao produto final, marca e sabor do mel produzido localmente, assim como protegendo uma propriedade de Andorra pelo mundo afora.
Nos últimos meses, 30 apicultores de juntaram para criar o Comitê de Apicultura APRA. O comitê foi criando com o objetivo de aumentar o atual volume de produção, certificações, processos de qualidade e distribuição.
Um almoço com muito mel e já nos despedíamos do senhor Baró, pois iríamos começar a mais sensacional das food trips que fiz em Andorra. Não via a hora de saber todos os detalhes do projeto agrícola mais ambicioso do governo de Andorra.
carn d’andorra
O projeto Ramaders d’Andorra foi criado pelo ministério de agricultura de Andorra juntamente com pequenos e médios pecuaristas em 1999, com o objetivo de criar e desenvolver o selo oficial de qualidade Carne de Qualitat Controlada d'Andorra ou simplesmente Carn d'Andorra, para produtos excelentes, com valor agregado e nativos, alem de verificar e certificar a fileira completa, desde a origem e traçabilidade do gado ate a alimentação, engorda e corte.
Valenti, um dos idealizadores e responsáveis pelo projeto, explicou que no passado os produtores rurais vendiam os novilhos com 6 meses de idade para um “engordador” de gado na Espanha por ser uma prática mais rentável. Mas o bacana da história é que o projeto começou a criar uma fileira organizada de criação e os produtores não tinham mais necessidade de vender o gado novo aos Espanhóis. Hoje em dia o projeto transformou-se em uma associação que realiza severos controles de qualidade desde o nascimento de cada bezerro, que são criados até os 11 meses de idade quando então são levados ate o único frigorífico de Andorra, que pertence ao governo e é um incentivo a mais para que o gado seja trabalhado localmente. Através também de estudos detalhados sobre raças bovinas realizado pela UPRA, um instituto de pesquisa europeu criado pela Umeå Plant Science Centre em Umeå na Suécia e pelo Instituto Nacional de Pesquisa Agrícola em Versailles na França, o governo de Andorra oficializou um acordo para o mapeamento, seleção de pureza e promoção de raças e carnes de qualidade.
Estávamos a caminho da cidade de Seu de Urgell, um pequeno vilarejo localizado a mais ou menos 1000 metros do nível do mar, onde iríamos conhecer Pere Torra, um criador de gado e membro do projeto Ramaders d’Andorra. Durante o caminho, Valenti e eu conversamos sobre vários assuntos, principalmente sobre a história da carne em Andorra e sobre a raça bovina nativa chamada Bruna d’Andorra. Há 200 anos um vírus havia se espalhado na área dos Pirineus, prejudicado muito a economia local, por causa de uma doença chamada febre aftosa. Por motivo de escassez de população bovina, produtores rurais foram em busca da raça Bruna Suíça ou Bruna dos Alpes, uma raça Suíça para repovoar os Pirineus. Na Suíça a raça Bruna e utilizada tanto para leite como para carne.
Chegando a fazenda de Pere, fomos recebidos com leite fresco e sorrisos. Pere nos contava que não recebe muitas visitas. Atualmente a família Torra cultiva tabaco e cria gado, com um rebanho pequeno de no máximo 200 cabeças, sendo 50 da raça Bruna d’Andorra e o restante divididos iguais entre as raças francesas Charolais e Limousine. O objetivo de Pere é ter o seu rebanho todo de Bruna d’Andorra nos próximos 2 anos. Eles comercializam 16 cabeças por semana e a maior parte é toda vendida em Andorra.
Pere e sua mulher Mari nos disseram que a primavera é sempre a melhor estação do ano, porque as gramas frescas da montanha faziam as vacas engordar e sua carne ficar mais saborosa. Durante o verão, os rebanhos são levados ate 1500 metros de altitude. O único problema era uma curva de produção completamente irregular. Normal pelo ciclo da natureza, mas não interessante comercialmente. Hoje em dia já é possível encontrar uma produção mais homogenia durante o ano todo, graças aos projetos de desenvolvimento da raça e das regras de produção.
Durante o papo fomos andando até a parte mais alta da fazenda, onde estavam algumas vacas Bruna. Eu já sabia sobre a preferência dos franceses sobre o sabor da raça Limousine, mas com as sensações únicas durante o almoço com o Oscar Magi, precisei comparar com a Bruna d’Andorra, uma carne que é melhor consumida maturada. Conversamos sobre um tema um tanto quanto controverso em todo o mundo. Segundo Pere e Valenti, é muito importante o processo de descanso da carne, pelo fato da acidez ser muito alta caso comercializada imediatamente após o abate. Ele até sugere 7 a 8 dias de descanso. A carne se transforma em um produto mais escuro, mais maturado, mais gostoso. Uma das controvérsias mais conhecidas sobre o assunto são os supermercados e últimos açougues na Europa (e no mundo), com argumentos como data de validade mais curta, educação do consumidor e hábitos de compra e consumo de carne, em teoria fresca, sendo somente aquela mais vermelha. Vale lembrar que para que a carne obtenha todas as suas características organolepticas e sensoriais, é fundamental que o bezerro somente consuma leite da mãe ate 6 meses.
uvas de altitude
Antes de voltar a Madrid ainda havia mais um destino no nosso itinerário. Tínhamos uma reunião com o Juan Visa Tor, o único produtor de vinhos de Andorra cujo a família produz vinhos excelentes desde o século 16. Começaram mais ou menos quando o Brasil foi descoberto pelos Portugueses. Incrível! A vinícola se chama Casa Beal, Vinyes d’Alta Muntanya e fica a 1100 metros de altura. Quando chegamos o Juan estava na companhia de seus pais, o Sr Florenti e a Sra Montserrat, um casal muito bacana que conheci e que fez questão de me mostrar a parreira centenária da propriedade de aproximadamente 140 anos. A propriedade da família tem mais ou menos 30 hectares, mas somente um com uvas plantadas no momento. O resto esta sendo utilizado para o cultivo das variedades de tabaco burley e tabaco negro. A família também cria a raça Bruna d’Andorra e fazem parte do projeto Ramaders d’Andorra.
Andorra tem uma exposição ao sol quase perfeita, mas solos pouco profundos que chegam ao máximo a 30 ou 40 cm. Na verdade, durante esse experimento de Juan criou o ambiente perfeito para a identificação da melhor uva a ser cultivada biodinamicamente.
Em 1984 Juan começou uma plantação experimental plantando 10 variedades de uva, mas por um problema com a altitude e talvez pelas condições do micro terroir, a única variedade que funcionou bem foi a delicada uva Gewustrasminer. Juan contou que controla o ph do solo, deixando uma alta acidez com a intenção de produzir vinhos que são conservados naturalmente por mais tempo. Ele nos contou orgulhosos que seus vinhos podem ir fáceis ate 10 anos ou mais depois de engarrafados. Hoje em dia a Casa Beal produz somente 3 vinhos, um sendo o clássico seco monovarietal gewustrasminer, o ice wine e um novo vinho que foi lançado pela primeira vez em 2009, utilizando botrytis. Os vinhos de Juan apresentam muitas notas florais com alguma percepção de frutas frescas e rosas silvestres. Os vinhos Casa Beal são comercializados em Andorra, Israel, Bélgica. Nesses poucos e excelentes dias em Andorra, descobri também que a lavanda comum ou lavandula angustifólia é originaria dos Pirineus, e não de Provance no sul da França, como pensamos muitos de nós. Mas essa é uma outra história que ainda vou contar os detalhes.
__________________________________________________________
Paulo de Abreu e Lima é gastrônomo profissional, mestre em cultura e comunicação alimentar, carioca e fundador do projeto www.ifoodorigin.com
Assinar:
Postagens (Atom)